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JÚLIO CORDEIRO
Em Barra do Ouro, um distrito de Maquiné a que se chega por estrada de chão batido, fica a propriedade rural onde Fernandes Vidor, 68 anos, cuida de quatrocentas caixas de abelhas e cultiva um parreiral com 6 mil pés. A produção de mel, de algumas toneladas por ano, é exportada para o Canadá. O tinto fermentado na pequena vinícola, 5 mil litros nesta safra, abastece adegas particulares. Há ainda o pomar e a criação de animais na quinta de 100 hectares, o que garante ocupação da manhã à noite para Vidor.
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É muito trabalho, mas é só parte do trabalho. Todos os dias, na hora do almoço e no fim da tarde, quando volta da lida no campo, o produtor rural encontra diante da porta de casa uma fila de pessoas à espera de que ele exerça um outro ofício – o de arrumador de gente. Em uma sexta-feira deste mês, Luzimar Boeira, 32 anos, veio com a mãe de São Francisco de Paula, a 50 quilômetros de distância.
– Trabalha no quê? – Vidor perguntou.
– Cerca – respondeu o rapaz.
Ainda no pátio, Vidor foi puxando conversa, foi sabendo que o jovem costumava se abaixar para cavar buracos e fazia muita força no trabalho. Estava com dores fortes nas costas e na coluna. Estivera no médico, fizera radiografias, mas não conseguira uma solução. Depois de uns minutos de papo, o vinicultor pediu a Luzimar que entrasse em uma sala com um sofá e duas poltronas, ornamentada por imagens religiosas na parede. Ao canto, sobre uma mesinha, havia um esqueleto humano em miniatura, no meio de ataduras e pomadas. Era o consultório de Vidor.
Ele orientou o paciente a tirar a camisa e se reclinar. Com as mãos, examinou detidamente o tronco do rapaz e explicou que algo havia saído fora do lugar, um nervo. Então apertou, puxou, empurrou. Por fim, passou uma pomada, enrolou uma faixa no abdômen e anunciou:
– Está em ordem agora. Mas teu trabalho é complicado. Não podes fazer esse esforço.
Era a terceira vez que Luzimar consultava com Vidor em um par de anos:
– Eu venho porque fico bom na hora. Ele coloca o nervo no lugar. Leva tempo para o problema aparecer de novo.
O jovem agradeceu e foi embora. Não pagou nada.
– Quem quer deixa uma contribuição. Ele me disse muito obrigado. Está bom. Eu conheço a situação deles. São gente pobre. Não vou deixar o cara ir embora sem arrumar. Eu arrumo, porque é um dom que recebi. Eu acredito que é uma coisa que Deus me deu. Tem uns que dizem: "Vou te trazer um presente". E nunca mais aparecem. E sabe por que não aparecem? É porque eles estão bem. Para mim, está bom assim – comentou Vidor.
Quando Luzimar foi embora, um casal já estava à espera, a professora estadual aposentada Diva Ana Cenci, 64 anos, de Xangri-lá, e o namorado, o PM reformado Mario Rosa da Silva, 68, de Arroio do Sal. Antes do atendimento, como de praxe, veio a conversa. Sentada em uma poltrona, Diva lembrou como, três anos antes, Vidor pusera fim, como por mágica, a meses de suplício:
– Fiquei 90 dias sofrendo, com muita dor. Eu não sabia mais o que fazer, só chorava. Eu não conseguia fazer nada com o braço. Nada. Não conseguia trabalhar, dirigir, usar sutiã, fazer comida. Não podia ficar sentada e não podia deitar. Era uma dor que na verdade começava na cabeça e descia, ia para debaixo daquele osso, não sei se é omoplata.
– Se perguntar o nome, não sei – avisou Vidor.
Diva prosseguiu:
– Sabe o que é uma pessoa não conseguir fazer nada? Estive em cinco ortopedistas, até em Porto Alegre. Fizeram ressonâncias e me encheram de remédio. Trataram por bursite, artrose, tendinite, tendinose. Tomei 20 injeções. Não resolveu. Já tinha gasto o que pude e o que não pude. Então fiquei sabendo de pessoas que vieram aqui. Daí me trouxeram. Estava com uma regata branca. O Fernandes mandou abaixar a regata e disse: "Este teu ombro está quatro centímetros mais baixo". Aí ele botou a mão para baixo daquele osso e foi como se desatasse um nó. Sabe quando tu sentes um cruc? Deu um barulho assim. O homem é fantástico. Ele me arrumou. Puxei a regata para cima e consegui levantar o braço. Na mesma hora. Nunca mais tive problema.
Vidor, escarrapachado, com uma perna por cima do braço da poltrona, interrompeu o relato:
– Só que assim: nenhum médico te examinou. Noventa por cento das pessoas que vêm aqui já foram no médico, mas eles nunca examinam a pessoa.
– Não. Fazer aquele movimento de colocar a mão debaixo do osso, como tu, nenhum médico fez – confirmou Diva.
– É que ali atrás nós temos um ramal que desce por aqui, ó, que é o que faz levantar o braço. O teu tinha parado – explanou Vidor, apontando para pontos do corpo da professora.
O produtor rural resolveu, então, contar como se havia tornado um "arrumador de gente", com fama em todo o Litoral Norte:
– Meu pai que fazia isso. E quem ensinou meu pai era um índio, os gringos diziam bugre, que não sabia ler nem escrever. O nome dele era Artiga. Na época, não tinha como tu ires ao médico. Não existia. Muitas vezes vi meu pai rasgar os lençóis aqui de casa para enfaixar as pessoas. Dos oito irmãos, fui o único que aprendeu. Eu não queria, mas quando meu pai morreu, as pessoas continuaram a vir. No dia do enterro dele, eu estava saindo do cemitério e já veio um cara: "Olha, eu sei que hoje não é um dia bom, mas não consigo caminhar mais. Estou mal". Então eu digo: "Não tem problema. Vamos lá".
O paciente à espera de socorro não era Diva, era o namorado, Mario, recém-saído de uma internação hospitalar de quatro dias. Ele havia sofrido uma queda e aguentara à base de morfina. Tinha a bolsa entupida de remédios, mas não estava suportando a dor. Não era a primeira vez que procurava Vidor. Quatro anos atrás, depois de um acidente de carro, preferiu consultar o curandeiro a seguir o conselho médico de implantar uma série de pinos na coluna. Chegou de muletas e saiu andando.
– Eu, se quebrar uma perna, venho aqui e não vou no médico – garantiu Mario.
Vidor mandou que o homem se reclinasse e deu início ao exame. Em poucos minutos, chegou a um veredito:
– Esta costela está para dentro e esta outra veio por cima. Esse hematoma que tu tens aqui é daquela costela que bateu lá.
Então chamou a mulher, Zélia, 61 anos – a sua "enfermeira" –, e pediu ajuda para que erguesse os braços de Mario. Em seguida, colocou a costela rebelde no lugar e enfaixou o tronco do PM aposentado.
– Agora tu podes puxar o fôlego, tu podes levantar o braço. Essa faixa segura, não deixa a costela vir para cá. Se vais tossir, seguras daquele lado. Botas a mão assim. E tem outra coisa, não podes dormir de bruços. Tens de dormir de lado.
– Já está bem diferente. Não está doendo mais – comemorou Mario.
Essa é a rotina de Fernandes Vidor. Um depois do outro, os pacientes chegam reclamando e saem dizendo obrigado. Apesar desse êxito, o produtor rural nunca estudou nada relacionado com medicina ou anatomia – cursou só até o 5º ano. Quando alguém o procura munido de exames de raio-X, ele nem olha, porque não é capaz de entender o que vê.
– Às vezes me dizem: "Por que tu não ensinas alguém?" Mas não tem o que ensinar. Tem de ficar um tempo aí, que nem eu fiquei seis, sete anos com o meu pai. Tem de ver o que está errado e depois tem de ver o que está certo – resume.
Mas talvez Vidor tenha, sim, algo a ensinar. O cientista social Rodolfo Puttini diz que seria fácil ir à polícia e denunciar alguém como o produtor rural de Barra do Ouro pelo exercício ilegal da medicina, mas isso seria desprezar conhecimentos e práticas de valor. Para o acadêmico, os curandeiros preservam saberes que deveriam inspirar os médicos.
– A cura, seja pelo médico ou pelo curandeiro, são duas pessoas se relacionando, tendo por meio o corpo humano. A saúde envolve um campo simbólico. Mas pode-se dizer que a medicina se afastou disso. A relação do médico com o paciente deixou de ser humana e passou a ser mediada por tecnologias. Os médicos deveriam ponderar sobre isso e sobre a sua profissão complexa, que do meu ponto de vista é mais da área das humanidades do que das ciências da saúde.
O próprio presidente do Cremers, Rogério Wolf de Aguiar, reconhece que a popularidade e o êxito dos curandeiros encerram lições para os médicos e deveriam levar a uma autocrítica. Ele admite que, como diz Vidor, muitas vezes as consultas são superficiais.
– Quando o paciente chega ao consultório e o médico não tem tempo para ouvir, para conversar sobre a vida da pessoa, e se limita a pedir exames, sem explicar, sem tocar no paciente, é claro que há um prejuízo enorme – diz Aguiar. – Por um lado, isso tem a ver com o avanço das tecnologias, que se colocaram entre a pessoa do médico e a do paciente. Por outro, hoje surgiu um intermediário na relação, que são os planos de saúde públicos e privados, com regras, normas, valores de consulta, que aumentam a possibilidade de encontrar recursos, mas também colocam limites administrativos, financeiros e burocráticos onde não deveriam existir. Isso leva a relacionamentos apressados e atendimentos superficiais. Isso abre espaço para essas práticas alternativas, onde as pessoas se sentem às vezes mais acolhidas e mais bem recebidas no seu sofrimento.
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