Na Sexta-Feira Santa da infância de Paulo Roberto Ramos em Santo Antônio da Patrulha, não se ligava o rádio e o tom de voz das conversas era sempre mais baixo do que o comum. Os familiares evitavam fazer qualquer tipo de limpeza no lar. A mãe cobria as imagens de santos, quadros e fotografias com panos roxos, para simbolizar o luto. Respeitava-se o jejum, fazendo apenas uma refeição – peixe e um pouco de arroz. Hoje, aos 66 anos, o aposentado mantém vivos hábitos de reflexão e luto pela lembrança da morte de Cristo, mas convive com mudanças consideráveis na forma como os cristãos – e até ele mesmo – celebram a data.
– As pessoas aproveitam para viajar, fazer feriadão, preocupam-se mais em passear. Para mim, é uma data de deixar de fazer algumas coisas e pensar nos outros, ajudar o próximo. Tem até festa do peixe! Não é o sentido, de comer muito e fazer festa, é um momento de recolhimento – analisa.
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Essas transformações encontram resposta, principalmente, na perda de influência que a religião tem na sociedade, avalia o professor emérito da UFRGS Luiz Osvaldo Leite. Para o teólogo, filósofo e ex-professor do Instituto de Psicologia da instituição, essas tradições atualmente ganharam um caráter mais cultural do que religioso. Os devotos mantêm os ritos movidos pela fé, mas parte da população segue por costume.
– Antes, era comum as pessoas fazerem abstinência, poderia ser qualquer coisa, até falar menos. O sentido dessa data é fazer algum sacrífico, que haja alguma privação, um momento de luto. Até as roupas tinham de ser de cor mais sóbrias, preto ou cinza. Mas tudo isso, de repente, deu lugar a grandes banquetes com peixe, bacalhau caríssimo e vinhos finos. E a Igreja também ficou bem mais tolerante – analisa.
Mais flexível em alguns pontos, a Igreja Católica incentiva os fiéis a fazerem atos de caridade e doações, em vez do jejum e da abstinência de prazeres. Para Luiz Carlos Susin, professor de teologia da PUCRS, as referências à Sexta-Feira Santa e à Páscoa já estão ficando "deslocadas" .
– Da quinta-feira à noite até o sábado, existia aquele vazio da morte de Cristo. Suspendia-se o trabalho da casa e se tinha a cultura do luto, agia-se como se tivesse realmente morrido alguém. Isso já está mais suavizado, a rotina do dia a dia continua – diz.
Luiz Osvaldo Leite concorda: o tempo das solenidades e das missas foi, em alguns casos, reduzido, e os horários se tornaram menos rígidos, adaptando- se à nova rotina dos fiéis.
– O mundo é mais dinâmico. Não havia cinema, televisão. As rádios, por exemplo, tocavam apenas música erudita no dia. As pessoas tinham mais tempo para ir à igreja. Assim como as circunstâncias socioeconômicas, que também eram outras. Era mais difícil viajar, por exemplo – cita.
Esses "ajustes" atingem até a rotina de quem tenta manter as tradições. Paulo, o personagem do início dessa reportagem, por exemplo, "vive intensamente a semana santa", mas com algumas adaptações. Ele mantém a TV ligada enquanto recebe a visita de familiares e deixa o rito de cobrir as imagens apenas para a paróquia que frequenta. Ativo na comunidade da Igreja das Dores, no centro de Porto Alegre, bairro onde mora, ele participa de todas as missas e celebrações nessa semana. E descarta viajar com a família no feriado.
– A gente ia à missa e nas celebrações da igreja, depois voltava para casa. Tinha-se um respeito muito grande naquela semana. Hoje, o pessoal é mais flexível – opina.
Entre jovens, tipos de "jejum" diferentes Matheus Pereira Rocha, 22 anos, estudante de Direito da UFRGS, faz parte de um grupo de jovens católicos com atuação na igreja. Ele, que trabalha com o setor de juventude da Arquidiocese, acredita que a referência religiosa da data permanece bastante forte. Durante a Quaresma, conta que não excluiu da rotina algo que gostava, mas diz ter prometido a si mesmo pensar melhor e avaliar algumas atitudes que gostaria de mudar.
– Existem várias formas de fazer jejum, cada jovem faz de um jeito. Tem amigos que fazem sacrifícios maiores, não comem carne durante toda a quaresma – conta.
Neste ano, ele não vai viajar com a família. Prefere celebrar a Páscoa na igreja que frequenta, mas não vê problema em usar o feriado para sair da cidade e ir à missa e às solenidades em outro município.
– A gente se coloca na postura de reclusão, não no sentido de ficar em casa olhando para as paredes, mas da postura da alma. Nunca tive essa imagem de ser um tempo de tristeza. Na sexta-feira tem o recolhimento, de saber viver o luto, mas não deixa de ser sem esperança. A gente já aguarda a alegria do sábado e da missa de Páscoa, que é uma das mais bonitas do ano – explica.
Único dia em que Churrascaria fecha
É raro passar em frente à tradicional Churrascaria Barranco, aberta há 47 anos na Capital, durante o horário do almoço ou da janta e não deparar com as portas abertas. O restaurante fecha apenas nas noites das vésperas de Natal e Ano-Novo, e o dia todo na Sexta-Feira Santa. Desde que fundaram o restaurante, os donos nunca serviram churrasco nessa data.
De tradicional família italiana e católica, os proprietários não pretendem mudar isso, mesmo que a concorrência esteja disposta a servir os clientes que querem comer carne. Segundo Ilmar José Tasca, 55 anos, sócio-proprietário do lugar há mais de 30 anos, a casa teria demanda para funcionar normalmente durante o feriado.
– Tem algumas outras churrascarias que abrem, mas pelo Barranco ser uma casa tradicional e de família católica, queremos manter esse dia. Na nossa casa, comemos peixe. E como não trabalhamos com outros produtos, preferimos não abrir – diz.
"Tradição está viva, mas não com tanto rigor"
A prática penitencial da Quaresma continua sendo praticada, diz o arcebispo metropolitano de Porto Alegre. Ainda que os costumes tendam a se diluir, dom Jaime Spengler acredita que é possível encontrar jovens que vivem esse período de forma mais intensa. O que ocorre, segundo o religioso, é que eles o têm feito de forma mais discreta. Veja trechos da entrevista:
Como o senhor enxerga as mudanças na celebração da Semana Santa?
Vivemos uma época de mudanças. Os costumes de duas ou três décadas atrás apresentam tendência a se diluírem. Encontramos jovens que vivem esse tempo de uma forma mais intensa, mas também mais discreta. Muitos aproveitam para um feriado prolongado para sair do ambiente urbano. A tradição continua viva, mas não com tanto rigor de outros tempos. A sociedade era marcada pelo cristianismo e pelo catolicismo, hoje não é mais assim. Nesse sentido, em termos de números, a prática diminui. Por outro lado, percebe-se em outros setores uma autenticidade maior, a observação e uma tradição de manter esse costume, de compreender melhor o sentido desse jejum.
Há sinais de um esclarecimento maior. De que forma os jovens católicos celebram a data?
A juventude é muito autêntica. Tem um grupo que, de forma discreta e intensa, busca viver aquilo que a Semana Santa inspira e propõe. Há grupos que se organizam e fazem visitas e celebrações junto a presídios, onde há uma população que vive a realidade desumana do cárcere. Se por um lado ouvimos críticas rigorosas à juventude, que seria apática e estaria em uma outra sintonia, há expressões de uma juventude preocupada com a fragilidade humana.
O que caracteriza a Quaresma?
O tempo da Quaresma é um tempo de reflexão e de penitência. Um esforço para compreender mais e melhor o núcleo da fé cristã. Consiste em esvaziar um pouco de si para que outro ocupe espaço em nós, para sentirmos o modo de ser de Jesus. A tradição durante a Quaresma é de refletir sobre uma temática que tenha importância social, como se faz com a Campanha da Fraternidade. Há, por vezes, vozes que criticam que pensar sobre isso tiraria o foco da Quaresma, mas essa reflexão e penitência não tem conotação individual ou pessoal, pode ter uma dimensão social, de refletir sobre algo que toda sociedade precisa.