Descontentes com uma norma da escola que proíbe o uso de shorts, centenas de alunos do Colégio Anchieta, de Porto Alegre, se reuniram na manhã desta quarta-feira para protestar contra a medida. Munidas de cartazes e com as bochechas pintadas com listras pretas, as alunas usaram o recreio para entoar hinos criados em grupos do Facebook e do WhatsApp, com mais de 300 membros e também para fazer um minuto de silêncio.
A manifestação ocorreu no dia seguinte à criação de um abaixo-assinado online, que relaciona a proibição dos shortinhos à cultura de violência contra a mulher. No texto, as meninas fazem um apelo à escola: "deixe no passado a mentalidade de que cabe às mulheres a prevenção de assédios, abusos e estupros; exigimos que, ao invés de ditar o que as meninas podem vestir, ditem o respeito".
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Na manhã desta quarta-feira, os costumeiros 20 minutos de intervalo se estenderam por quase uma hora com o protesto. Meninos também vestiram camisetas pretas em sinal de apoio à causa.
A mobilização começou com um grupo de meninas do 9º ano que não se conformou com a atitude da diretoria da instituição de vetar, tirar da sala e até mandar para casa as meninas que não estivessem vestidas de acordo com os padrões exigidos. Segundo relatos das adolescentes, coordenadores e membros da direção costumam visitar as salas de aula para verificar se os shorts estão na altura das mãos das meninas com os braços esticados ao longo do corpo. Quando não se enquadram nesse quesito, podem levar advertência, ser convidadas a ir para casa ou mesmo trocar de roupa.
Enquanto o protesto tomava forma nos grupos fechados, Giulia Morschbacher, 15 anos, aluna do 2º ano do Ensino Médio, foi para internet pesquisar como criar um abaixo-assinado. Depois de escrever um manifesto sobre o tema, a adolescente publicou a página.
– Eu falo com a coordenadoria há três anos questionando isso e nunca tiveram interesse em considerar a discussão. O abaixo-assinado será enviado para a diretoria para que eles vejam que não são só os anchietanos que querem o diálogo – diz ao se referir ao fato de que pessoas de diversos cantos do Brasil assinaram o documento digital. – A gente quer incluir questões políticas e sociais no colégio – completa Giulia.
Ciente da mobilização da filha, a publicitária Ana Cristina Morschbacher apoia a atitude das meninas:
– Fiquei superorgulhosa da movimentação que elas criaram. Não esperava tudo isso. A forma como é tomada a decisão é antiquada. Não acho que colégio seja lugar para usar shortinho muito curto ou roupa muito cavada, mas é preciso ter uma adequação ao clima. Tem que ter essa liberdade, mas sem ser obsceno e não levar para o lado da objetificação do corpo da menina.
Segundo Marcela Alvarenga de Freitas, 15 anos, também aluna do 2° ano, a escola alega que o uso da vestimenta poderia distrair colegas e professores.
– É um absurdo falarem isso – critica.
A ex-aluna e hoje mãe de uma estudante da instituição Mariela Belleza Stella também não concorda com a postura adotada:
– A vida inteira usei sainha, vestidinho, e não era comprido. Não existia essa mentalidade maldosa – relembra. – Faz tempo que eles estão incomodando por causa do shortinho. Acho uma coisa tão retrógrada, o Anchieta é tão moderno.
Homens precisam reeducar a sua postura perante as mulheres, sugere especialista
Em um aspecto as especialistas ouvidas pela reportagem concordam: o colégio precisa promover o diálogo sobre o tema com os alunos e familiares.
– A roupa, para mim, é uma forma de expressão, a escola é um local de trabalho, é do coletivo, mas o diálogo é o caminho para tudo. Tem que sentar, discutir e ver por que querem sair desse jeito e não de outro – avalia a professora das faculdades de Educação e Ciências da PUCRS e especialista em Educação Sexual Eva Regina Carrazoni Chagas.
Embora afirme que vivemos em um mundo altamente sexualizado, Eva defende que o argumento usado pela escola é muito frágil:
– A escola tem que abrir espaço para discussão, inclusive com os pais. E a abordagem tem que ser esta: que é um ambiente de trabalho.
Do outro lado, a professora e integrante do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero da UFRGS, Jane Felipe acredita que o primeiro passo é o colégio estar consciente do tempo em que vive.
– Antes de proibir ou baixar uma normativa, é preciso entender o contexto social e político em que se está. Hoje em dia, não se aceitam mais concepções machistas em que as mulheres sejam responsabilizadas pela distração dos homens no trabalho ou na escola, pelo estupro ou pelo assédio. Isso é inaceitável.
Para ela, isso evidencia a necessidade de abordar temas como violência contra mulheres, gays e racial. A especialista diz, ainda, que é preciso repensar a educação dos homens:
– Eles se acham no direito de olhar para a mulher ou menina e falar barbaridades. Que direito eles têm de chegar e largar uma gracinha? Homens são educados para terem esse olhar invasivo e desrespeitoso para as mulheres. Parece que a sexualidade masculina é vista como incontrolada. Você observa isso quando eles mesmos dizem "foi ela quem provocou"– diz.
Casos semelhantes ocorreram em São Paulo, Rio Branco e até em outra escola de Porto Alegre. Na capital paulista, um abaixo-assinado realizado no ano passado conseguiu liberar o uso de short pelas alunas.
Zero Hora pediu contato com o colégio, que se manifestou por uma nota da assessoria de comunicação:
"O Colégio Anchieta está acompanhando a reivindicação dos alunos de trazerem para discussão temas da atualidade presentes no contexto educativo e social. Por isso, reitera que está dialogando com a comunidade anchietana (alunos, pais, professores, funcionários) sobre as questões em pauta, de acordo com seus princípios e valores, bem como, seu modo de ser e proceder”.
Leia o texto completo do manifesto das estudantes:
"Nós, alunas do ensino fundamental e médio do Colégio Anchieta de Porto Alegre, fazemos uma exigência urgente à direção. Exigimos que a instituição deixe no passado o machismo, a objetificação e sexualização dos corpos das alunas; exigimos que deixe no passado a mentalidade de que cabe às mulheres a prevenção de assédios, abusos e estupros; exigimos que, ao invés de ditar o que as meninas podem vestir, ditem o respeito.
Regras de vestuário reforçam a ideia de que meninas tem que "se cobrir" porque garotos serão garotos; reforçam a ideia de que assediar é da natureza do homem e que é responsabilidade das mulheres evitar esse tipo de humilhação; reforçam a ideia de que as roupas de uma mulher definem seu respeito próprio e seu valor.
Ao invés de humilhar meninas por usar shorts em climas quentes, ensine estudantes e professores homens a não sexualizar partes normais do corpo feminino. Nós somos adolescentes de 13-17 anos de idade. Se você está sexualizando o nosso corpo, você é o problema.
Quando você interrompe a aula de uma menina para forçá-la a mudar de roupa ou mandá-la pra casa por que o short dela é "muito curto", você está dizendo que garantir que os meninos tenham um ambiente de aprendizagem livre de "distrações" é mais importante do que garantir a educação dela. Ao invés de humilhar meninas pelos seus corpos, ensinem os meninos que elas não são objetos sexuais.
Ao invés de ensinar que a minha decência e o meu valor dependem do comprimento do meu short ou do tamanho do meu decote, ensine aos homens que eu sou a única responsável pela definição da minha decência e do meu valor. Ensine aos homens o respeito, desconstrua o pensamento de que a roupa de uma mulher decreta se ela é ou não merecedora de respeito.
O Colégio Anchieta diz ser um colégio que ensina a pensar e fazer o futuro, mas nós não vemos nada de futuro em suas aulas e suas políticas. Não discutimos temas atuais, fenômenos sociais; não aprendemos política; nunca ouvimos falar de feminismo, machismo, sexismo, racismo e xenofobia em sala de aula; não aprendemos sobre opressão de classe, gênero e raça; não nos falaram sobre o desastre da Vale/Samarco nem sobre as operações anticorrupção acontecendo no Brasil; não nos explicam sobre cotas para universidade; não nos ensinam a diferença entre opinião e discurso de ódio; não nos ensinam o mínimo para compreender e para viver em sociedade.
A prioridade é ensinar para o ENEM e vestibulares, entendemos. Mas a educação social e política não pode ser deixada de lado. É por meio dela que construiremos uma geração melhor que a anterior; é por meio dela que criaremos um mundo onde mulheres não serão julgadas e humilhadas pelas roupas que escolhem vestir, pela forma que tem ou por quantas pessoas já transaram; é por meio dela que acabaremos com a realidade de que, a cada 2 minutos, 5 mulheres são espancadas no Brasil e, a cada 11 minutos, 1 é estuprada; é por meio dela que criaremos um mundo onde cotistas não precisarão ouvir que "roubaram a vaga" de alguém que estudou a vida inteira em colégio particular; um mundo onde mães de crianças negras tenham certeza de que, no fim do dia, seus filhos voltarão pra casa; um mundo onde não perderemos mais vidas para a Guerra Às Drogas; onde mulheres não morrerão em clínicas clandestinas de aborto; onde a religião e a política não se misturarão; onde o capital não será mais importante do que a vida; onde os problemas de hoje serão solucionados.
Nós, alunas do ensino fundamental e médio do Colégio Anchieta, nos recusamos a obedecer a regras que reforçam e perpetuam o machismo, a cultura do estupro e slut shaming."