Bastaram os primeiros acordes de Lua de Cristal para o grupo se animar, logo na chegada ao bar, e cantar em coro o hit de Xuxa. Caça e Caçador, na interpretação de Fábio Jr., na sequência, fez Fernanda de Souza se postar diante do microfone, dançando e encorajando os outros a subirem ao palco. Alguns tropeços na sincronia, a voz por vezes se antecipando à letra exibida no monitor do karaokê, não constrangeram a estudante de 24 anos, que entoou forte o refrão:
- A gente nem pensa na hoooora, passa dia e noite assiiiim!
Fernanda e outros 18 amigos aproveitaram a noite do último sábado no Boteco Babilônia, em Porto Alegre, em mais um programa da sortida agenda do Clube Social Pertence, serviço que promove a sociabilização de jovens e adultos com deficiência intelectual. Pagando uma mensalidade, os participantes podem frequentar oficinas de culinária, teatro, artes, fotografia e ginástica, entre outras modalidades, e, nos finais de semana, reunir-se para curtir boates, shows, sessões de cinema e teatro, parques e restaurantes.
O projeto foi idealizado por Sarita Zinger, professora que trabalha com deficientes há 15 anos. Em aulas particulares, ela percebeu que faltava aos alunos - com autismo, síndrome de Down ou limitações decorrentes de problemas no parto - um repertório próprio de vivências longe do núcleo familiar.
- Eu via que eles não tinham vida social. Os amigos dos pais eram os amigos deles. Eles não tinham o que contar do final de semana. Quis formar grupos a que eles pudessem pertencer - explica a coordenadora.
Uma van busca os participantes em casa, e as saídas são acompanhadas por seguranças e cuidadores. Com a convivência, as amizades se fortalecem _ de aniversário no sábado, Sarita recebeu presentes e levou uma torta para celebrar a data com a turma. Uma das mais assíduas ao microfone, a estudante Fernanda definiu o que sente depois de 11 meses no clube:
- Para mim, ninguém tem deficiência.
Recíprocas ou não, paixões também surgem. Gabriel Prudêncio Vicente, 28 anos, namora há um ano uma companheira do Pertence. O auxiliar de escritório deixou a consorte na mesa e se aventurou no karaokê com Cadê Você?, de Odair José, proferindo versos que destoam do seu momento atual: "O tempo vai, o tempo vem, a vida passa, e eu sem ninguém".
- Senti um pouco de vergonha. Um pouco só - descreveu Gabriel após a performance.
Os locais visitados são informados com antecedência sobre as particularidades do grupo. Nos quatro anos desde o início do trabalho, não houve registro de problemas ou mal-estar com o público em geral. Certa vez, no Bar Opinião, um "trenzinho" iniciado pelo Pertence contagiou todos os presentes, que saíram saltitando pela pista. No Babilônia, o coordenador Victor Daniel Freiberg abordou um casal recém-chegado, desculpando-se pelo alto volume da empolgação dos jovens cantores. Almir, 62 anos, engenheiro, e Elisabet Flores, 60, dona de casa, são clientes assíduos do local há anos e deixaram claro que não estavam incomodados, compartilhando o microfone com os membros do Pertence. Na escolha do repertório, Almir evidenciou as boas-vindas com uma canção da Turma do Balão Mágico, sucesso infantil dos anos 1980:
- Somos amigos, amigos do peito, amigos de uma vez. Somos amigos, amigos do peito, amigos de vocês.
Educadores incentivam convivência com diferentes grupos
Especialistas reconhecem a importância de projetos que incentivam a socialização de jovens e adultos com deficiência a partir de um grupo de iguais, mas destacam que é fundamental que a integração se dê também entre indivíduos com características diversas.
- Conviver com todas as diferenças humanas me parece uma posição mais saudável - afirma a pedagoga Marlene Rozek, doutora em Educação.
Maura Corcini Lopes, coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa em Inclusão da Unisinos, diz que o ideal é que as pessoas com deficiência estejam cada vez mais incorporadas à população, que terá o olhar treinado para o diferente:
- Há pouco tempo, os deficientes não circulavam. Aquele que não circula, não aparece, também se mantém numa espécie de silêncio. Qualquer forma de circulação é bem-vinda.
Coordenador do Clube Social Pertence, Victor Freiberg lamenta que o processo de inclusão no Brasil, em escolas e empresas, ainda apresente tantos entraves. Ele conta que muitos dos jovens e adultos que chegam ao clube têm um histórico de más experiências envolvendo preconceito e bullying.
- Geralmente, eles se sentem mais à vontade no grupo de iguais - justifica Freiberg.
Inclusão
Projeto promove a socialização de jovens e adultos com deficiência intelectual
Participantes do Clube Social Pertence frequentam boates, sessões de cinema, parques e restaurantes
Larissa Roso
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