As férias estão batendo na porta das pequenas Antônia, 11 anos, e Betina, três. Frente ao mau tempo que, ao que parece, não vai ceder muito, as irmãs já programam para os dias de folga brincadeiras que podem ser realizadas dentro de casa e não custam um tostão. Acampamento debaixo da mesa, concurso de desenho, contação de histórias e jogos são opções para deixar os dispositivos digitais de lado e, de quebra, unir a família - oportunidade rara durante a correria do ano letivo.
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Como ocupar o tempo das crianças durante as férias
Os pais que conseguem parar no mesmo período dos filhos precisam estar preparados para uma maratona. A energia que as crianças normalmente gastam na escola se concentra, durante as férias, nas atividades do dia a dia. Se a chuva der trégua e o sol aparecer, não dispense voltinhas de bicicleta, passeios em parques e outras atividades ao ar livre, revezando com os pais dos amiguinhos a supervisão da garotada. Mas se o tempo instável persistir, usar a criatividade dentro de casa é suficiente para garantir a diversão. Para os pais não ficarem exauridos, a receita é entrar na onda.
- É um momento em que a família é convocada a estar mais presente, a largar os celulares e a se inserir na rotina da criançada. Muitas vezes, é nesse encontro em que os pais realmente vão prestar atenção nos anseios dos filhos, nas suas dúvidas e expectativas - afirma a professora da UFRGS Jane Felipe de Souza, integrante do Grupo de Estudos em Educação Infantil e Infâncias (Gein).
A criatividade é o ponto-chave para não deixar o tédio se instalar. Os pais de Antônia e Betina se preparam para as férias durante o ano inteiro. Quando chega julho, a professora de artes Rosana Bones e o músico Sandro Wasen desencaixotam quilos de sucata, sobras de tecido, folhas de rascunho e outros materiais que, se não fosse a consciência de que são potenciais brinquedos, poderiam ir para o lixo. Ela já ganhou, entre os amigos, o apelido de "acumuladora".
- Eles debocham, mas já notei que, nas vezes em que demos brinquedos mais caros às nossas filhas, elas até gostaram, mas seguiram preferindo pintar e bordar em uma caixa de papelão - conta a professora.
O fato de a felicidade residir, muitas vezes, nas coisas mais simples e baratas é indicativo de que existe lado bom na crise, sustenta a psicopedagoga Maria Célia Malta Campos: despertar a criança que está adormecida nos pais.
- O adulto parece que ficou com o coração endurecido, fazendo sumir qualquer vestígio de que aquela pessoa um dia foi criança. Mas se ele fizer uma forcinha, isso volta. Ele pode olhar para dentro de si, se lembrar do que gostava de fazer quando pequeno e propor para seus filhos. Isso tem um peso enorme para a criança - afirma ela, doutora em Psicologia Escolar e presidente da Associação Brasileira de Brinquedotecas.
Maria Célia aponta que, com os pais cada vez mais concentrados em suas próprias minitelas - smartphones, tablets e notebooks -, brincar com os filhos pode ficar em segundo plano. De acordo com pesquisa da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal em parceria com o Ibope, "brincar/passear" é a quarta opção mais lembrada pelos entrevistados quando são questionados sobre o que é mais importante para o desenvolvimento de uma criança de zero a três anos. As respostas vencedoras incluem levar ao médico, amamentar e cuidar a alimentação.
- Claro que cuidar as vacinas e a alimentação é importante, mas os pais esquecem o papel do "brincar" como recurso primordial para o desenvolvimento da saúde física e mental da criança - diz Maria Célia.
A família de Rosana e Sandro tem sorte: no condomínio em que moram, em Gravataí, a vizinha é a artista plástica Catherine de León, ilustradora e escritora infantil que oferece oficinas de arte para crianças por meio do blog Kids Indoors, propondo brincadeiras divertidas para serem realizadas dentro de casa. Antônia e Betina são as "cobaias" das atividades e já se habituaram a fazer bonecos de palito, roupas de boneca com lantejoulas e marcadores de página divertidos.
As férias em modo econômico também potencializam afetos. O consultor financeiro Álvaro Modernell dá uma dica para trocar, por exemplo, a ida a uma pizzaria - em uma época em que os preços dos restaurantes estão nas alturas - por um momento em família na cozinha: montar a própria massa de pizza, escolher os recheios e assar no forno.
- Assim, você compensa o prazer de sair de casa e arejar pela oportunidade de compartilhar algo diferente com os filhos - diz Modernell.
ENTREVISTA: Tânia Ramos Fortuna, professora de Psicologia da Educação e coordenadora do programa "Quem quer brincar?", da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Qual o papel do brincar no desenvolvimento de uma criança?
Vivemos há séculos o paradoxo de desqualificar o brincar e valorizar o trabalho e o estudo. Quando esses momentos de lazer chegam, embora muito desejados, podem vir carregados de culpa, algo que desde muito cedo atormenta as crianças. Em uma cultura produtivista como a nossa, a brincadeira acaba ocupando um status muito baixo, porque "não serve para nada". E não serve mesmo. A função da brincadeira é ser gratuita. Quando ela educa, instrui, ensina alguma coisa, trata-se de um ganho secundário, mas não é por isso que uma criança brinca. Ela brinca por brincar. É claro que a brincadeira tem qualidades amplas: os pequenos aprendem a se relacionar consigo mesmos - com seus desejos, medos, sonhos e desafios - e com os outros. Também remete ao passado, já que cada brincadeira condensa a história da nossa humanidade. E representa muito o presente: a lente da brincadeira filtra a nossa realidade imediata. Brincar é uma linguagem de compreensão, é uma forma que a criança tem de se comunicar.
Como utilizar as férias de inverno para potencializar isso e envolver os pais?
Às vezes, os pais, na melhor das intenções, querem encher a rotina livre dos filhos de atividades, sem saber que o mais importante é que, durante esse período, a criança seja senhora do seu tempo. Isso significa tornar os filhos tão responsáveis quanto eles pelas decisões das férias, consultando-os, levantando suas sugestões e envolvendo-os de fato nas programações. A participação dos pais nas brincadeiras dos filhos deve ficar em um lugar entre o "não tanto" e o "não tão pouco". Intromissão demais inibe a criança, a faz perder sua individualidade, mas ao mesmo tempo ela não quer se sentir abandonada. Então o papel dos pais é entrar na onda propondo desafios, problematizando, fazendo perguntas e estimulando a brincadeira. Há de se ter cuidado para que o adulto não seja o protagonista da brincadeira, mas um facilitador. Os adultos também devem estar atentos ao manejo de conflitos entre filhos de idades diferentes e entre filhos e seus amiguinhos. Como na maioria das vezes não dá para evitar, eles precisam incentivá-los a resolver esses problemas. Por exemplo: cinco crianças querem andar de motoca e só tem uma. Ok, e agora? Como eles querem resolver esse impasse? É preciso ensiná-los a gerir, eles mesmos, essas situações, antes de afixar uma regra de gente grande.
As crianças têm tido menos interesse em brincar?
Existe um déficit de brincar nas crianças principalmente nas escolas. Visitei uma em que a professora despejou um balde de Lego na frente dos alunos e eles ficaram atônitos, sem saber o que fazer. Precisaram de muito estímulo até começarem a se divertir com aquilo. Por outro lado, vemos que, embora a tecnologia esteja presente no cotidiano das crianças, elas se divertem com pouco. Um brinquedo caro não substitui aquela boneca velha, que carrega uma carga emocional muito forte. E é por isso que o valor simbólico do conserto encanta tanto as crianças. Construir e criar coisas também são questões determinantes. Elas vislumbram novos mundos através de um objeto, enxergam tudo no nada. Em outra escola que visitei, flagrei uma turma brincando muito contente com a caixa de uma geladeira que havia sido esquecida no pátio, enquanto a casinha de bonecas estava vazia. Objetos simples se transformam em um campo livre à imaginação.