A vida de Laudelino de Quadros Ribeiro é permeada por duas frases: "não pode" e "tudo na santa paz". A primeira delas define o seu ofício, a segunda, o homem que é. Para alguém que nunca precisou procurar emprego, a vida profissional deste guardião da Estação Ecológica do Taim terminou na última semana com louvor: foram 35 anos mantendo intacto um patrimônio dos brasileiros.
A aposentadoria veio a contragosto. O técnico ambiental que não estudou em escola, mas no lombo do cavalo, vai precisar se despedir dos cerca de oito mil hectares de pampa que cuidava registrados na palma da mão. Não há quem conheça a faixa de praia e banhado do farol Sarita até o começo da Lagoa Mangueira como o Cabeça. É pelo apelido, dado por um velho índio ainda na infância, que todos o conhecem. E é como se apresentava pelo rádio VHF, sempre às 8h, ao meio-dia e às 18h.
- Sede, sede, é a base Costeira.
- Na escuta, Cabeça. Tudo certo? Algum problema?
- Tuuudo certo, na santa paz.
Invariavelmente, nos únicos três momentos em que dava notícias aos poucos colegas (são apenas 11 funcionários na reserva), vinha a frase que mostra como encara a vida. A "santa paz" não é apenas um estado de espírito adquirido por Laudelino, fruto do isolamento e da solidão, é do que precisa para estar vivo. Assim ajudou a manter intacto aquele pedaço de Taim próximo ao Oceano Atlântico.
Uma missão que recebeu sem precisar passar pelo departamento de recursos humanos. O currículo está apenas na ponta da língua. O senhor de 70 anos nasceu e se criou dentro do que viria a se tornar a estação ecológica. Filho de um funcionário da estância Caçapava, uma propriedade de quase 20 mil hectares desapropriada em parte para ser preservada, tinha o perfil inigualável para um vigia.
Aceitou o cargo de técnico ambiental, uma relação de trabalho que consistia mais ou menos no seguinte: Laudelino entregaria o conhecimento, o olhar atento e o zelo pela região em troca do salário e da liberdade de viver onde encontrava a "santa paz". Não conseguiu fazer o curso de autuação, e nunca pôde ascender a fiscal. Por isso, quando avistava um infrator, chamava o reforço dos colegas.
A Caçapava e a Costeira são as duas mais isoladas das cinco bases da Estação Ecológica do Taim, hoje administrada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO), autarquia ligada ao Ministério do Meio Ambiente. Eram a praça de Cabeça até sábado passado, último dia de trabalho antes da aposentadoria compulsória. Agora, não tem mais volta. Precisa deixar o lugar que, mesmo para os colegas, todos fiscais ambientais de botas gastas, é um fim de mundo - sem luz e com uma água de poço meio amarelada e salobra.
Na base Caçapava, Laudelino trabalhou por 25 anos, vivendo ao lado da mulher, Frida, que morreu em 2006. Na Costeira, os últimos 10. Passava até um par de meses isolado na Costeira. Dava os boletins pelo rádio e, na maior parte dos dias, não via ninguém. Perguntado se queria ter conhecido mais gente, nega, convicto.
- Gosto é disso tudo que está aí. Solidão. Céu aberto - resumiu, fitando a imensidão do pampa.
Para os intrusos, as poucas palavras que dizia, invariavelmente, incluíam o "não pode", dito de maneira firme. Não pode pescar, não pode caçar, não pode tomar banho no mar, não pode acampar, não pode fazer xixi nas dunas. "Mas como assim?", vinham as perguntas. "Não pode, é reserva", o assunto era encerrado. E quando alguém era pego no flagra...
- Eles sempre vinham com "ah, eu não sabia". "Agora sabe", eu dizia. É reserva. Te arranca.
Apesar da falta de escolaridade, a maneira correta e íntegra com que tratava a todos vencia qualquer argumentação. Certa vez, um grupo de juízes cruzava pela faixa de areia demarcada pela estação com caminhonetes tracionadas. Laudelino interveio, soltou o famigerado "não pode" e começou a ser questionado sobre a legislação que limitava o passeio. Sem saber qualquer linha das leis, descreveu a finalidade da unidade de conservação e convenceu os juristas. Mais tarde, o então chefe da reserva, Amauri Sena Motta, recebeu o telefonema de um deles para cumprimentar a postura de Laudelino.
- Vai encontrar pessoa como ele em concurso público: não tem. É um exemplo de disciplina e de homem íntegro - define Motta.
Campereando capivaras
A rotina era morosa naquele canto de campo. Monitorar intrusos, caça e pesca ilegais, a entrada do gado de terras vizinhas, alertar para a invasão de pinus da vez. Todos os dias, Laudelino encilhava o cavalo pelas 7h, duas horas depois de acordar, e fazia 14 quilômetros de cavalgada até a divisa da unidade com uma imensa propriedade privada de quase 30 mil hectares da espécie invasora - maior em área que a própria estação ecológica, que hoje é de quase 11 mil.
Os pinheiros eram o fim da rota de ida. Os 14 quilômetros de volta poderiam ser ampliados quando algum rastro de carro ou de qualquer outra coisa surgisse na areia da praia. Se houvesse vestígios, ele os seguiria até encontrar o intruso. Laudelino morou a vida toda próximo do mar, a não mais do que dois quilômetros de distância - 300 metros no caso da Costeira. E mesmo cavalgando de sol a sol, só molhou o corpo até os joelhos. Diz que nunca quis tomar banho lá e se refere à "água salgada" com desgosto, como se fosse um erro da natureza.
Ao longo da vida, participou de muitas prisões em flagrante, sempre com apoio dos fiscais e da polícia ambiental. Não autuava, mas o seu conhecimento era solicitado em qualquer operação naqueles banhados. Participava indicando os cantões do Taim. "Ali dá para passar de caminhonete tracionada", "nesse canto só a cavalo e olhe lá", "daquele buraco os caçadores gostam" ou "é lá que pescam traíra".
As prisões caíram muito dentro da estação. Um pouco porque a consciência ambiental aumentou, mas principalmente pela mudança na rota dos caçadores. Com medo da fiscalização intensa das últimas décadas, estão atuando em outras terras menos vigiadas. Hoje, o número de autuações fica na casa dos 30 a 40 por ano dentro do parque ecológico, entre caça, pesca e outros delitos.
O principal alvo das espingardas é a capivara, também chamada de capincho. Abundante nesses banhados hoje, a vida do maior roedor da terra não era tão fácil antes da criação da estação, em 1986. A tradição de caçá-lo perpetuou-se até pouco tempo. Milhares de capincheiros foram pegos até que a legislação endurecesse ao ponto de cobrar altas multas e constituir crime, como atualmente. Os bichos, que eram ariscos, hoje são tão mansos que chegam à porta da casa de Cabeça.
- A rotina aqui é essa: capincho vai, capincho vem - diz.
Ao assumir a missão de defensor do Taim da ação humana, chegou a tentar "camperear" as capivaras durante uma seca forte no Banhado do Palmito, que fica próximo à Lagoa Mangueira. Isto é, tentou tocar como gado os bichos para que fossem para a água. Sem entender o objetivo da investida, eles não fizeram a sua vontade.
Observador do comportamento de todos os animais, Laudelino também presenciou o sumiço da ema. Considerada a maior ave brasileira, era abundante na região. Mas desapareceu com a caça por esporte. Grupos matavam só pelo desafio e as deixavam atiradas no banhado. Dizem que o guarda sabia até qual família gostava de fazer isso, mas como os fatos datavam de muito antes da proteção da área por leis federais, preferiu esquecer.
Hoje, a estação está com a documentação encaminhada para finalmente ampliar a atuação para os 33 mil hectares previstos na sua concepção. Mas a grande expectativa do momento na sede do ICMBIO no Taim é: Laudelino seguirá na santa paz fora do seu fim de mundo? Ele está morando na Vila Quinta, próximo a Rio Grande, ao lado de uma mulher quase 30 anos mais nova. E a única chance de voltar às bases é encarar o mesmo serviço de forma voluntária.
- Vamos propor isso para que ele possa levar essa experiência toda adiante - conta Henrique Ilha, chefe da estação.
No calor da festa de despedida, Laudelino disse que não vai querer e esfregou o indicador e o polegar para justificar. Mas se insistirem com o Cabeça...