Enquanto os cenários iam sendo montados para a apresentação de "O Quebra-Nozes de George Balanchine", a Fada Açucarada da noite, a pequena e graciosa Tiler Peck, estava nos bastidores fazendo os ajustes de última hora em suas sapatilhas.
- Odeio o barulho que as sapatilhas fazem, mais do que tudo nesse mundo. Acaba um pouco com a magia da coisa - disse ela, com voz mansa.
Aí ela começou o ritual de todas as noites: bater, sem dó nem piedade, cada um dos pés do calçado de seda rosa contra a parede de concreto do teatro David H. Koch. "Eu tento não fazer muito barulho", acrescentou, meio sem fôlego por causa da pancadaria, o bang! bang! bang! bang! ecoando pelo corredor, "mas o pior é que ajuda mesmo".
Durante a apresentação relativamente discreta daquela noite, Tiler usou dois pares de sapatilhas, nada extraordinário para o Balé da Cidade de Nova York, cujos integrantes usam de dez a doze pares por semana. Só que essa soma pode ficar cara, pois cada um custa quase US$ 100 nas lojas. A companhia compra 8,5 mil pares por ano com um orçamento anual específico de US$ 650 mil.
Uma vez que muitas bailarinas consideram as sapatilhas quase como extensão do corpo - peças essenciais de um equipamento que ajuda a criar a ilusão de que o ser humano nasceu para dançar na ponta dos pés -, existe toda uma cultura voltada para o calçado nas companhias de dança.
O centro nervoso do Balé da Cidade é uma sala no porão do Teatro Koch, onde há prateleiras e mais prateleiras lotadas com centenas de pares novos, ainda embrulhados em plástico. Esse é o domínio de Dara Faust, a supervisora, que ajuda cada bailarina a encontrar o par certo. Quase todas as sapatilhas usadas ali são da Freed of London, fornecedora tradicional.
- Elas são personalizadas, feitas à mão, e cada bailarino pode escolher o profissional que monta a estrutura. Cada uma tem um detalhe diferente; podem até servir para a mesma coisa, mas por dentro cada uma tem um jeito - explicou ela.
Os dançarinos, além de decidirem o tamanho e a largura, escolhem também todas as dimensões de cada parte da sapatilha - e acabam ficando muito ligados aos seus sapateiros, de quem conhecem apenas as marcas impressas no solado de couro. Alguns usam letras; outros, símbolos como um sino, uma cruz de Malta ou uma coroa.
- Há uns anos, quando a companhia foi para Londres, alguns foram à fábrica para conhecerem seus 'criadores' - disse Faust, rindo.
Entretanto, até as sapatilhas feitas à mão são personalizadas por cada bailarino. Alguns, como Tiler, batem o calçado contra a parede; outros os dobram para frente e para trás; há também aqueles que os espremem na dobradiça da porta. Cada um decide que fitas e elásticos elas devem levar.
Alexa Maxwell tem 19 anos e, em novembro, foi contratada para fazer parte do corpo de balé. Recentemente ela exibiu sua rotina e a maneira como entorta a sapatilha a ponto de fazer saltar o prego que há lá dentro ("Não preciso dele; aliás, às vezes ele sai sozinho e fica meio solto, machucando") e descola parte da palmilha interna, que apara com a tesoura.
- Tenho a impressão de que se cortar um pedacinho dá para fazer ponta melhor porque consigo arquear o pé melhor - contou ela.
Como vários outros bailarinos, ela aplica um pouquinho de cola na parte de dentro da ponta - a preferida do Balé da Cidade é uma substância potente chamada Satellite City Hot Stuff, geralmente usada em móveis.
- Só ponho na ponta. Só isso já faz a sapatilha durar mais - ensinou.
Para colocar as fitas, alguns apelam para uma alternativa à linha de costura: fio dental. Tiler é uma que acha difícil manipular linha de costura:
- O fio dental é mais fácil e mais resistente.
Para os papéis que exigem sapatilhas de outras cores que não branco e rosa, Tim Foster as tinge na "Shoe Spray and Fabulon Room", sala que fica na cobertura do teatro.
Ele trabalha em uma mesa dentro de um tipo de capô de metal gigante, em frente a um exaustor que vai do chão ao teto para expulsar o cheiro dos sprays e tintas. Quando o equipamento está ligado, Foster tem que colocar um protetor semelhante àquele que os funcionários dos aeroportos usam na pista para proteger a audição.
- Tenho um livro que traz receitas para todos os tons que você pode imaginar; é só misturar as cores e aplicar nas sapatilhas. Parece até aqueles quebra-galhos de moda, coisa rápida, e seca por igual - conta Foster, que dançava em produções da Ópera de Nova York e depois passou a fazer parte do departamento de figurinos.
Recentemente ele demonstrou como uma leve camada de tinta para couro na ponta da sapatilha pode deixá-la amarela, perfeita para a Dança do Chá de "O Quebra-Nozes".
- Fica uma beleza! - exclamou.
Os aprendizes do Balé da Cidade usam sapatilhas comuns; só depois que são contratados é que podem ter uma personalizada. Alexa está iniciando o processo de busca pelo tamanho e marca certos - e para isso, como com tudo nessa vida, há de se levar em conta as preferências.
- A minha favorita é o 'A'. É bem quadradona. Gosto do encaixe dela no pé e do fato de não amolecer tão rápido nem atrapalhar meus movimentos. Sem dúvida, o 'A' é a melhor - ela comentou um dia no vestiário.
Dara sorriu:
- O 'A' está com uma lista enorme de espera e no momento está restrita aos bailarinos mais experientes.
Alexa discorreu um pouco sobre outros fabricantes de que gosta, reconhecendo a subjetividade da escolha.
- Às vezes tem uma marca que eu odeio e a minha amiga simplesmente adora. Depende mesmo é da forma do pé - concluiu ela.
Na ponta do pé
Para os bailarinos do Balé da Cidade de Nova York, sapatilhas são uma extensão do corpo
Integrantes da companhia, que compra 8,5 mil pares por ano, chegam a usar de 10 a 12 sapatilhas por semana
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