Por Aidir Parizzi
Engenheiro, autor dos livros “Mar Incógnito” e “Embarque Imediato” (BesouroBox, 2022)
Enquanto o coro da Abadia de Westminster entoa Zadok the Priest (“Zadoque, o Sacerdote”), composição de Händel usada em coroações britânicas há três séculos, o Arcebispo da Cantuária, primus inter pares dos bispos anglicanos, unge o novo monarca no ápice da liturgia. A cerimônia realizada na quase milenar Abadia de Westminster é eminentemente religiosa, formalizando o papel do monarca como governador supremo da Igreja da Inglaterra.
No próximo sábado, dia 6, Charles III receberá os óleos sagrados sentado na lendária Cadeira de Eduardo, o Confessor (1003-1066), último rei anglo-saxão, canonizado pelo Papa Alexandre III em 1161. Datado do século 13, o trono ancestral tem, sob o assento, um espaço para a Pedra do Destino, usada por séculos na coroação de monarcas escoceses até ser confiscada pelos ingleses, em 1296. Devolvido à Escócia em 1996, o bloco de 150 quilos reside no Castelo de Edimburgo e será temporariamente unido ao trono real para a coroação.
A coordenação dos grandiosos eventos reais, como funerais e coroações, recai historicamente sobre o Earl Marshal (Conde Marechal), cargo ocupado desde o século 16 pelo mais graduado nobre inglês, o Duque de Norfolk. Paradoxalmente, os duques de Norfolk jamais se converteram à Igreja da Inglaterra, permanecendo fiéis ao catolicismo.
As Ilhas britânicas mantêm-se indissociáveis do Cristianismo desde que o rei pagão Penda de Mercia foi morto em batalha, em 655. Os deuses saxões Tim, Woden, Thunor e Freya sobrevivem apenas no nome dos dias da semana na língua de Shakespeare. Contudo, a relação entre os cristãos britânicos, anglicanos e católicos em particular, foi sempre recheada de conflitos.
Em 1534, Henrique VIII decidiu romper com Roma, fundando a Igreja Anglicana e se autoproclamando cabeça da nova denominação. O intuito era driblar o Papa Clemente VII, que havia proibido o divórcio da primeira esposa, Catarina de Aragão, bem como o casamento com Ana Bolena, com quem o monarca esperava ter um herdeiro. Além disso, estava implícito o desejo de se livrar do poder de Roma, no que pode ser considerado o primeiro Brexit. Quando, dois anos depois, Henrique decidiu se safar também de Ana, que não lhe dava filhos, optou por uma decisão não menos radical, mandando decapitar a esposa, mesmo destino amargado por Katherine Howard, outra de suas seis consortes. Antes do quiproquó clerical, Henrique cultivava boa relação com Roma, tendo sido o primeiro monarca intitulado pelo Papa como Defensor da Fé. A abreviação de Fidei Defensor, “FID DEF”, figura nas moedas britânicas até hoje.
Por séculos, a Igreja Católica foi considerada uma ameaça à monarquia e à nação. Em 1570, Pio V excomungou Elizabeth I, herdeira de Henrique VIII. A retaliação foi imediata, com punição aos católicos que não participassem de missas anglicanas e pena capital aos que protegessem padres, além de legislação que proibia católicos de ascenderem ao trono.
O parlamento, temeroso da influência papal, decretou em 1673 que todos os oficiais civis e militares negassem a transubstanciação. Na mesma época, o chamado “Complô Papista”, uma fake news, denunciava suposta conspiração papal para assassinar Charles II, suscitando uma onda de histeria anticatólica. Apesar disso, a realeza inglesa sempre nutriu certa fascinação por Roma. Alguns, como o próprio Charles II em seu leito de morte, se converteram ao catolicismo.
Os 70 anos de reinado de Elizabeth II ficaram marcados pela aproximação inédita entre católicos e anglicanos. A rainha visitou cinco papas e recebeu João Paulo II e Bento XVI. A fé da monarca impressionou os papas que com ela estiveram. Enquanto Elizabeth I havia sido chamada por Pio V como “falsa rainha e serva do crime”, Elizabeth II era descrita nos corredores do Vaticano como “última monarca verdadeiramente cristã”. Enquanto isso, o católico Duque de Norfolk seguirá presidindo coroações da realeza britânica, símbolo de que, apesar da hostilidade mútua do passado, a separação entre as monarquias britânica e papal jamais foi absoluta.
Seguidamente conhecemos a história por pessoas e fatos isolados, cada um com significado notável em seu tempo. Sem o devido aprofundamento, porém, tudo parece desconexo, ausente de narrativa. Avaliando o conjunto histórico, concluímos que a ponte entre Londres e Roma, que esteve perto de ruir, restou fortalecida nas últimas décadas e, quem sabe, guarda tempos ainda mais promissores com Charles III e seus descendentes.