Saudade da época em que eu conhecia os Estados Unidos, antes de ficar seis meses na Pensilvânia. Como era fácil, de Porto Alegre, apontar bandidos e mocinhos, defender e atacar com clareza e precisão. Meio ano depois, para cada certeza conquistada, recebi, de brinde, uma dúzia de novas dúvidas.
A seguir, um pequeno desfile.
Mais estranho ainda é que essa região – West Philadelphia – seria, no Brasil, um bairro de classe média.
Em nenhum outro lugar do mundo, os descendentes dos escravos vivem tão bem quanto nos EUA. Mesmo assim, são os mais pobres de uma sociedade rica. Barack Obama se elegeu presidente. Depois dele, Donald Trump. O pêndulo da história passou a oscilar com mais força, chegando a extremos distantes. Levará tempo para voltar ao centro. A questão racial é uma das mais discutidas aqui. E também uma das mais ignoradas _ um jogo de faz de conta tão explícito, que parece irreal.
Escrevo este último texto americano desde Haverford, subúrbio distante 20 minutos de trem da Filadélfia. São seis paradas até a estação central, na Rua 30. Entre cada uma das cinco primeiras, o tempo de viagem é de exatos dois minutos. Entre a quinta e a sexta parada, misteriosamente, pula para 10. Sabendo a resposta, perguntei a vários americanos o porquê. Nenhum deles jamais havia pensado sobre o fato. Eu expunha a minha tese: Overbrook, a quinta parada, faz limite com a região mais pobre e mais negra da Filadélfia. O trem passa por ali como se ela não existisse.
Mais estranho ainda é que essa região – West Philadelphia – seria, no Brasil, um bairro de classe média. Com sobrados, carros nas garagens, ruas asfaltadas, iluminação pública e água encanada. O trem dos ricos brancos prefere passar reto e rápido.
A maior parte dos meus interlocutores se surpreendeu e concordou. Uns poucos tentaram argumentar. A distância não valeria a pena pelo preço da tarifa. Acontece que, depois da Rua 30, o trem ainda para duas vezes, em intervalos curtos. E na volta, depois de Overbrook, são pelo menos 10 estações pontilhando o subúrbio abastado.
É nesse subúrbio que estão as melhores escolas públicas, sustentadas com impostos locais. Regiões mais endinheiradas recolhem mais. Logo, investem mais em prédios, em tecnologia e em professores. Mesmo nesses locais mais caros, existem opções de moradia acessíveis para quem prefere boas escolas a casas grandes. O meu aluguel aqui é mais barato do que o de um apartamento de três quartos no Moinhos de Vento. E não gasto com guardas, câmeras e cercas elétricas. O ônibus escolar passa na esquina e é grátis. Ida e volta, todos os dias. Mas uma boa universidade é impagável. Porém, alunos com notas boas ou com dons especiais para esportes e artes têm acesso a bolsas. Tente rotular.
Quando alguém queima uma bandeira americana em algum protesto, está queimando exatamente o quê? O país que mais gasta em armas ou o lugar onde a liberdade é sagrada?
Chego em casa e encontro o vizinho. Um cara legal, culto, divertido, ex-oficial da inteligência do Exército, que conhece o mundo e sai para passear com a sua Mercedes novinha. Mora em uma casa grande. Ele é afrodescendente e jamais teve problemas por aqui, onde há também japoneses, latinos, iranianos e judeus. Não sei se esse vizinho pega o trem.
Então eu fico confuso. Os extremos convivem separados por linhas invisíveis, que muitos não percebem e outros fingem não existir. Qual seria o rótulo?
Melhor saúde do mundo, milhões de pessoas sem cobertura. Modelo econômico baseado em produção e consumo. Berço da consciência de que esse modelo é insustentável no longo prazo. Donald Trump e Martin Luther King. Bob Dylan e Robert McNamara.
Quando alguém queima uma bandeira americana em algum protesto, está queimando exatamente o quê? O país que mais gasta em armas ou o lugar onde a liberdade é sagrada?
Qualquer tentativa de reduzir os Estados Unidos a uma frase é um erro. Quando cheguei aqui, pensava em escrever um livro. Um mês depois, uma reportagem. Agora, tive de me esforçar para chegar até o fim de um texto que faça o mínimo de sentido. Nem sei se consegui.
Amanhã, quem sabe, redijo um tuíte.