Convertida à comodidade do Apple Music, acordei de madrugada na sexta-feira para baixar Caravanas, o último disco do Chico. Desconfio que foi desses netos conectados e parceiros, Clara Buarque e Chico Brown, a ideia de divulgar Tua Cantiga quase um mês antes, como degustação, e incendiar a internet. A falsa polêmica travada nas redes sociais em torno dos versos de Tua Cantiga despertou o interesse dos fãs e dos que desprezam o artista por suas posições políticas. Se era uma estratégia de marketing, funcionou: o barulho no lançamento foi infinitamente superior ao do trabalho anterior.
Perdi a conta de quantas vezes ouvi cada faixa nas últimas horas, tentando eleger minha preferida. As Caravanas, que dá título ao disco, tem a força de um furacão e provoca o mesmo tipo de inquietação de obras-primas como Construção e O Meu Guri. Uma crônica em versos cortantes. Um contraste com a delicadeza de Blues para Bia, em frases como "Não vou censurar a bela/ É da natureza dela/ Viver solta por aí" ou "Talvez queira me avisar/ Que no coração de Bia/ Meninos não têm lugar/ Porém nada me amofina/ Até posso virar menina/ Pra ela me namorar".
A regravação de A Moça do Sonho dá ares de novidade a uma canção com idade de mocinha. A parceria com Edu Lobo é de Cambaio (2001), mas cheira a lavanda e não a naftalina: "Um lugar deve existir/ Uma espécie de bazar/ Onde os sonhos extraviados/ Vão parar". Dueto, que Chico já gravou com diferentes parceiras femininas, ganhou suavidade na voz adolescente de Clara, a neta de 18 anos, irmã de Chico Brown (parceiro em Massarandupió), herdeiros de dois ícones da música, o avô e o pai, Carlinhos Brown. O que antes constava "nos astros, nos signos, nos búzios" agora também está "no Tinder, no Face e no Instagram".
De Tua Cantiga já se falou à exaustão nas redes sociais, mas aqui é preciso registrar que não vi nada de machismo ou de incitação à destruição de lares. Para mim, é apenas um homem apaixonado dizendo que largaria mulher e filhos para viver uma paixão.
Com chance de mudar de ideia daqui a pouco, elejo Desaforos como minha preferida em Caravanas. Tão sutil, que os destinatários são capazes de não entender. Na aparência, é a resposta de um homem a uma mulher que fala mal dele pelas costas, mas se você arrancar a primeira camada vai encontrar uma indireta para os detratores que, vivendo em outro mundo, amam odiar Chico Buarque de Holanda e destilar fel nas redes sociais.
Repare nesta sequência de versos: "Fico admirado por incomodar-te assim/ Jamais pensei que pensasses em mim/ Nunca bebemos do mesmo regato/ Sou apenas um mulato que toca boleros/ Custo a crer que meros lero-leros de um cantor possam te dar tal dissabor". Releio a letra inteira e concluo que não tem como mudar de ideia: é de Desaforos que gosto mais. Por todas as estrofes, mas, principalmente, por esta: "Vejo-te a flanar pela avenida/ Como dama/ Florescida num viveiro/ E em salões que nunca vi/ Serei o primeiro a duvidar/ Que em horas vagas/ Os teus lábios delicados/ Roguem pragas por aí".