Viajei 500 quilômetros e encararei outros 500 na volta só para assistir à pré-estreia do filme A superfície da Sombra em um cenário singular: a fronteira do Brasil com o Uruguai, nas cidades irmãs de Chuí e Chuy. "Na fronteira" não é força de expressão: a tela de led foi instalada no lado brasileiro e as 600 cadeiras ficaram a maior parte no Uruguai.
Antes do horário marcado para o início da exibição, todos os lugares já estavam ocupados. E foi chegando gente dos dois lados, com suas cadeiras de praia e cuias de mate. Homens, mulheres, crianças e cachorros ocuparam a avenida que, tecnicamente, divide os dois países. Na prática, une em vez de separar.
É dessa fronteira invisível (e de fronteiras psicológicas) que trata o filme de Paulo Nascimento, baseado em livro homônimo de Tailor Diniz, meu marido e pai dos meus filhos.
Esse filme só não me trouxe dor de cabeça porque não costumo gastar energia com gente de mau caráter. No auge das manifestações a favor do impeachment, ignorantes insufladas por um blogueiro mal-intencionado chegaram a parar um carro de som em frente ao meu local de trabalho, acusando Tailor de ter recebido R$ 3 milhões da Lei Rouanet, o que, obviamente, é tão ridículo que optamos por nem tomar tempo da Justiça com uma ação de danos morais.
Não vou fazer aqui a crítica do filme, porque esse é trabalho para os colegas do ramo. Escrevo sobre o lançamento para falar de identidade e desse sentimento que é tão familiar aos que nasceram no interior, de se ver retratado em uma história de ficção. Como nem Chuí nem Chuy têm cinema, é provável que a maioria das mais de mil pessoas presentes só tivesse assistido a filmes pela TV. Em sessão aberta, à luz do luar, na fronteira de dois países, ninguém. Isso talvez explique o encantamento.
Logo no início, quando o protagonista Antonio, personagem de Leonardo Machado, chega ao Chuí dirigindo um antigo conversível, a plateia aplaude como se estivesse em um show. Aplaude a paisagem de ruas empoeiradas, dos cata-ventos do Parque Eólico, das fachadas familiares. Aplaude as primeiras falas de Blanca Lucía (Giovana Etcheverria), que fala o portunhol tão comum nos dois lados.
Mais emocionante ainda foram os aplausos aos figurantes. Quando aparecem na tela vestidas de preto as sete viúvas que rezam pela alma dos mortos, a plateia aplaude com entusiasmo. Não pela cena em si, plasticamente bonita, mas porque as reconhece - cinco delas foram recrutadas na comunidade.