O jornalista Vitor Netto colabora com o colunista Rodrigo Lopes, titular deste espaço.
Além de sofrer com impactos estruturais, perdendo casas e comércios, os gaúchos afetados pela enchente de maio foram – e ainda seguem – com impactos na saúde mental.
O Médicos Sem Fronteiras (MSF), organização internacional que oferece ajuda médica e humanitária a populações em situações de emergência, esteve no RS realizando diversos serviços de atenção aos atingidos. A gaúcha e supervisora de saúde mental do MSF, Júlia Martins, conversou com a coluna sobre o assunto.
Quais foram as ações voltadas pra saúde mental desenvolvidas aqui no Rio Grande do Sul pelo Médicos Sem Fronteiras durante a enchente?
Chegamos em maio no Rio Grande do Sul e desenvolvemos várias ações em diferentes regiões, priorizando as mais afetadas: no Vale do Taquari, pegando em cinco municípios como Lajeado, Encantado, Roca Salles, Cruzeiro do Sul e Estrela. E também em Canoas e Eldorado. E foram divididos principalmente três eixos: apoio à gestão – gestão estadual, municipal e também saúde indígena. E um segundo eixo de cuidado à saúde mental de trabalhadores do sistema único de saúde, principalmente da atenção primária de saúde, as equipes dos centros de atenção psicossocial. E um terceiro eixo que era de cuidado às comunidades. Então, tanto atores-chave, como organizações não-governamentais locais, lideranças comunitárias, alguns professores e diretores de escola, e comunidade em geral. Então, nesses três eixos se dividiu o trabalho que realizamos. Iniciamos por essa parte de apoio à gestão, construindo planos, dando esse apoio especificamente no âmbito da saúde. E um segundo momento, trabalhamos mais com o acolhimento mesmo de cuidadores. De trabalhadores dos serviços de saúde que atendemos e das comunidades também. Em um terceiro momento, trabalhamos com formações mais específicas sobre o tema de emergência em saúde mental e apoio psicossocial para esses atores-chave.
O primeiro contato com as pessoas era fácil?
Eu arrisco a dizer que, num contexto de emergência, nada é fácil. As coisas são muito complexas. Então, já tínhamos feito uma atuação no Rio Grande do Sul no ano passado e isso possibilitou que já tivéssemos uma experiência construída e consolidada na região, especificamente no Vale do Taquari. E com a experiência que o Médicos Sem Fronteiras já tem no Brasil há alguns anos, já tínhamos um desenho de trabalho que, eu não diria que facilita, mas que ele nos orienta de como chegar até as pessoas que mais precisam, como fazer esse fluxo. E temos um trabalho muito focado e um cuidado muito grande de não duplicar esforços. Para chegarmos até as pessoas, atuamos em parceria com as autoridades locais. Sabemos que no Brasil existe o Sistema Único de Saúde (SUS), que é um sistema que já tem essa base territorializada. Então, as unidades básicas de saúde estão nos territórios das pessoas, conhecem essas famílias. Uma vez que trabalhamos em conjunto com as autoridades locais de saúde, conseguimos acessar tanto essas equipes, quanto essas pessoas que estão vivenciando diretamente a situação nas comunidades não vinculadas a serviços, porque profissionais estão nesse duplo lugar, de estarem atuando, mas também fazerem parte das comunidades afetadas. Esse é o fluxo que fazemos para chegar até as pessoas, principalmente com lideranças comunitárias e também caminhos mapeados em conjunto com as autoridades locais de saúde.
Quais os principais impactos que observaram no RS?
Falando especificamente de desastres, das enchentes, têm muito impacto na saúde mental. Falamos, na verdade, muito impacto na saúde, porque a saúde integral ela é um todo, não separa a mental da física. Então, seja por como as pessoas vão vivenciar essas situações potencialmente traumáticas, seja pelo impacto que essas situações têm nos serviços, nas equipes, nas instituições que estão relacionadas aos cuidados de saúde mental, vamos ter um grande impacto direto nesse contexto de emergência. É muito importante priorizarmos e fortalecermos a saúde mental. E quando falamos de um desastre dessa proporção, como foi o que aconteceu no nosso Estado, temos um impacto gigantesco. Então, sempre trabalhamos nas formações, principalmente, até nos acolhimentos mesmo, sobre o que chamamos de reações esperadas, que são reações diante de uma situação difícil, de desastre, ou de um evento crítico inesperado. Chamamos assim porque são formas que a população em geral lida com isso. Então, elas podem envolver um momento mais agudo, imediato quando está acontecendo o desastre. Um segundo momento de assimilação, que é quando estamos entendendo aquilo que está acontecendo. E elas podem chegar a um momento considerado crônico e o nosso objetivo é justamente evitar que as pessoas cheguem a esse ponto. E como que fazemos isso? Promovendo cuidados adequados em saúde mental. Essa questão das reações esperadas elas envolvem reações de estresse, de alarme e têm afetações fisiológicas mesmo, motoras cognitivas. Estamos falando aqui de taquicardia, de sudorese, de hiperatividade, de ficar muito mais disperso, muito mais ativo, aflição, angústia, agitação, medo, incapacidade de reagir. Então, isso são reações esperadas diante de uma situação como essa que vivenciamos no Rio Grande do Sul. Muitas vezes as pessoas que estão passando por isso acham que elas estão vivendo alguma doença, algo que precisa necessariamente de uma intervenção medicamentosa e não funciona dessa forma necessariamente. Em um segundo momento, quando estamos fazendo essa assimilação do evento crítico, do desastre, podemos ter reações de hesitação. Por exemplo: "ah, eu não consigo. Não quero voltar aquele lugar que é um lugar que eu estava habituada a ir. Mas agora eu não me sinto mais capaz de voltar lá porque isso pode me acionar em emoções difíceis". Então, isso faz parte desse processo de lidar, de enfrentar com essa situação tão difícil. E as pessoas podem continuar sentindo ansiedade um pouco mais aumentada, algumas dificuldades em relação ao sono, angústia, por exemplo, quando chove. As pessoas podem sentir aquele receio traumático e de rememoração.
Vocês observaram alguma coisa de extraordinário que foi vista aqui no Rio Grande do Sul?
Podemos pensar nessas reações esperadas frente a emergências, mas sempre estar atento e adaptar as especificidades de cada lugar e de cada grupo populacional, porque as pessoas não são iguais, pelo contrário, elas são muito diferentes e temos muitas diversidades, seja por Estado, seja por quem é essa pessoa, o que constitui a vida dela, que direitos ela tem acesso. Precisamos entender, de fato, quem é aquela pessoa? Como é que aquilo se aplica ao contexto daquela família, daquela população? E acho que de extraordinário, temos a dimensão do evento que aconteceu no RS, o número de pessoas atingidas, de municípios
Vocês seguirão trabalhando no Estado? E qual a importância de seguir esse trabalho no período pós-enchente?
O Médicos Sem Fronteiras trabalha de dois principais formatos, com projetos regulares, que são projetos contínuos, e projetos de emergência, que acontecem durante o período de emergência como uma resposta para apoiar e fortalecer o sistema local. A atuação que tivemos recentemente no Rio Grande do Sul foi um projeto de emergência. Qual que é o nosso objetivo? Fortalecer as políticas públicas para fortalecer a saúde da população. Então, nesse caso, já entramos pensando na nossa saída. Mas quando saímos, temos a intenção que fique como legado o trabalho que foi desenvolvido. Então, tanto o acolhimento que foi ofertado à população e às equipes, quanto o apoio à gestão, isso tudo esperamos que fique como um legado. Ou seja, por mais que saiamos do território, temos a expectativa de que o trabalho continue. E tivemos um retorno muito legal de pessoas que participaram das atividades do Médicos Sem Fronteiras no ano passado. E que, esse ano, quando essa situação aconteceu, elas se sentiam mais preparadas. Não que necessariamente se torna menos difícil. É muito difícil, é muito sofrimento, mas quando sabemos o que fazer, quando temos de alguma maneira já um repertório de como lidar com isso naquele momento, isso torna um pouco menos difícil. Então, essa é a nossa intenção, que o trabalho seja continuado por quem fica.
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