"Vacinas" para o clima. É assim que o secretário-executivo do Observatório do Clima, Márcio Astrini classifica a necessidade de a sociedade implementar medidas de prevenção para que sejam evitados impactos de novos eventos extremos, como a enxurrada que atingiu o Rio Grande do Sul.
O Observatório do Clima é uma rede de entidades ambientalistas da sociedade civil brasileira formada com o objetivo de discutir o problema do aquecimento global especificamente no contexto brasileiro. Em entrevista à coluna, ele fala sobre como poder público e empresários podem unir esforços para a adaptação e as lições que podem ser tiradas da tragédia.
A seguir os principais trechos.
O que é mais necessário e urgente do ponto de vista ambiental a partir da tragédia?
O mais importante é que pessoas que podem tomar ações, mobilizar a máquina do Estado, os governantes, acreditem que esse é um assunto sério. Não falta informação: faz décadas que estamos ouvindo, estudando, lendo, publicando relatórios, fazendo conferências de clima. A cada conferência, há milhares de cientistas dizendo "olha, está acontecendo, vai acontecer, essa é a previsão, esses são os modelos". Os políticos vão para as conferências de caravana. Na última, em Dubai, teve mais de 60 deputados, mais de uma dezena de senadores, governadores. O atual governo, inclusive do Rio Grande do Sul, foi nas últimas três conferências do clima, ouviu todas as previsões. Todos vão, ouvem, mas parece que não escutam. Se não estão com disposição de ler um relatório, é só abrir a janela de casa, ligar no noticiário. Não é apenas no Brasil. O Sudeste Asiático, nos últimos três anos, bateu recorde de chuvas. Todos os recordes foram batidos no sul da Europa. No Japão, os últimos nove anos foram os mais quentes registrados na história. São números muito acachapantes. Sabe aquela história de que comigo nunca vai acontecer? Só que um governante não pode se dar a esse luxo, porque, quando ele não acredita que vai acontecer na sua região, não é um problema só dele, é de toda a população que vive naquela área. Quando um governante não acredita que pode acontecer, ele não vai adotar medidas, reservar orçamento para prevenção, conversar com a população. O principal é a gente tentar não chegar na tragédia. Mas, mesmo quando você chega na tragédia, há formas de não entrar nessa situação de colapso. Uma delas é com a população avisada, tendo sirene, sabendo quais as áreas precisam ser evacuadas, para onde as pessoas vão, como vai fazer com energia, água, alimentação, medicação. Agora, se você não acredita que pode acontecer, nada disso vai ser planejado. Não precisava que fosse assim. Pelo menos que se tenha o que está ocorrendo no Estado como uma lição não apenas para o Rio Grande, mas para todo o país. Infelizmente, esse quadro veio para ficar, a gente vai precisar trabalhar a partir dessa nova realidade.
Mesmo que não neguem as mudanças climáticas, podem não priorizar.
Há aqueles que negam, infelizmente. Muitos deputados, senadores agem e agiram assim na covid. Mas há aqueles que ouvem, acham importante, mas não saem do lugar, não fazem nada, não dão a importância devida à situação. É exatamente isso que a gente vê, inclusive não apenas no Rio Grande do Sul. Se a gente pegar todos os governos de Estado, grande maioria das prefeituras, o comportamento é o mesmo. Precisa mudar, porque o preço da inação é muito maior do que o investimento que a gente faz na prevenção.
Como mudar a mentalidade desses políticos?
Esses políticos não são eleitos como um prêmio que ganharam. Eles têm uma responsabilidade. Nem sempre as agendas de responsabilidade são populares, dão voto. Com a covid, a gente viu o quanto é importante trabalhar a prevenção, o estudo na área de medicina, mesmo que isso não seja público. A prevenção a desastres precisa ser parte da responsabilidade do gestor público. É claro que quanto mais a gente fala, quanto mais a imprensa cobre, e a cobertura de imprensa tem aumentado muito no último período, mobiliza a população. Quanto mais a gente cobrar dos governantes, mais vão prestar atenção. A solução da agenda do clima, o cuidado com ela, é estatal. Começa com governos, com a capacidade de o Estado de operar, de colocá-la em prática. O regramento ambiental é estatal, o socorro às vítimas é estatal, como você vai fazer as políticas públicas, quanto vai investir em adaptação, em campanhas de educação da população. É como uma campanha de vacinação, ela é uma campanha estatal. Para você vacinar as pessoas, o Estado precisa produzir a vacina, fazer a campanha de conscientização, dizer que aquilo é importante, levar as pessoas a se vacinarem. É a mesma coisa, a gente precisa de vacinas para o clima. A gente precisa se preparar antes que chegue o problema.
Várias consultorias estão oferecendo ao Estado e a Porto Alegre seus serviços gratuitamente para a gestão da reconstrução. Quais os pontos positivos e quais os negativos desse tipo de contrato?
Há várias cidades no mundo que têm uma movimentação no sentido de prevenir desastres. A Holanda é um país que, praticamente, está abaixo do nível do mar, sofre com inundações há muito tempo. Há um século eles vêm melhorando suas obras de engenharia e de prevenção. A gente tem a mesma coisa o Japão, com relação a terremotos. Eles têm uma engenharia diferente do restante do mundo para construir casas, para construir portos, aeroportos, toda a infraestrutura. No Reino Unido, agora, há uma preocupação muito grande, em algumas partes dos Estados Unidos também, por conta de furacões, elevação do nível do mar. Há, em vários lugares, um planejamento de como reconstruir essas cidades ou tornar essas cidades menos vulneráveis a situações extremas. Porém, todos esses planos têm que partir do governo, do serviço público, porque tem de haver um planejamento. Não adianta você construir um bairro ou edifício, ou um condomínio de casas. Você precisa fazer uma construção que tenha uma visão integrada. É isso que se faz ao redor do mundo, mas esse planejamento precisa ser do governo, não pode ser cada um por si. Porque, se for assim, alguns conseguirão, outros, não, quem tem mais dinheiro vai implementar, quem não tem, não vai conseguir. A gente precisa ter um plano que passa, inclusive, por recuperação de áreas naturais que previnem contra enchente, contra o transbordamento do rio. Essas áreas foram aterradas, invadidas. Vamos precisar repensar, porque, senão a natureza volta e toma o lugar que era dela.
Há como correr atrás desses planejamentos para colocá-los em prática agora ou isso tudo só terá efeitos a longo prazo?
Há sempre uma pergunta na cabeça de todo mundo: "Vai acontecer de novo?" Provavelmente, sim, aliás, é muito mais provável que aconteça de novo do que nunca mais aconteça. A gente não sabe como vai acontecer, se será na mesma intensidade, se será menor, mas provavelmente ocorrerá outra vez. Então, a gente tem de fazer o trabalho duplo, que é de recuperar toda a infraestrutura, a capacidade social de vida das pessoas e, ao mesmo tempo, pensar que pode chegar a ocorrer de novo. Se isso ocorrer, o que vamos fazer para que não tenha esse nível de impacto? São cidades totalmente destruídas, se vão conseguir retomar as suas atividades econômicas, se vai ser no mesmo lugar ou não. Vamos ter de fazer essa avaliação daqui para frente e, na reconstrução, já fazer com que essas localidades não tenham mais essa vulnerabilidade. E, muito mais importante, que as pessoas que estão em área de risco saibam disso, saibam que, em algum momento, podem ter de deixar suas casas. Estamos vendo pessoas dizendo que não sabia que poderia ter de deixar sua casa. Esse momento faz a diferença entre você salvar vidas e perdê-las. A gente não pode se dar o luxo de, na hora do desastre, as pessoas começarem a ser informadas. É um tempo muito precioso que nós vamos gastar e pode fazer a diferença entre a vida e a morte de algumas pessoas. A gente tem de estar preparado para, caso aconteça novamente, todos tenham de saber o que fazer, para onde ir, que há a possibilidade de evacuação e que algumas pessoas estão em uma área de extremo risco. Isso acontece em outras regiões do Brasil, Petrópolis, por exemplo, que sofre com deslizamento de terra há muitos anos, tem sistemas de sirene, pessoas que moram em encostas, elas sabem que estão em um risco muito extremo. A gente não pode simplesmente adotar esse risco muito extremo como normal, você tem de ter um plano para tirá-las de lá, caso seja essa a necessidade. Enquanto essa obra de engenharia, a realocação não é feita, as pessoas que estão vivendo nessas localidades precisam ter esse plano emergencial na cabeça.
Precisamos fechar a torneira do problema (aquecimento global), senão tudo o que estamos vendo vai piorar com o tempo.
No Rio Grande do Sul, a gente tem observado muitos empresários tomando a frente, sugerindo planejamentos, principalmente porque o Estado tem limitações orçamentárias. Ao mesmo tempo, não seria necessária uma centralização para a reconstrução?
Sempre vamos ter os políticos, nesse momento, querendo tomar conta do cenário. Contanto que eles, e também os empresários, estejam trabalhando para ajudar a situação e a resolver a situação, eu acho que está ok. Todos são bem-vindos. A iniciativa privada, claro, ela vai querer colocar para girar os seus negócios, vender os seus serviços. Desde que esses serviços façam sentido para a população e para a recuperação do Estado, está tudo ok e que eles estejam integrados dentro de um plano maior. A mesma coisa para os políticos. Eles precisam garantir que, independente das suas bandeiras partidárias, o interesse maior seja o da população. Todos eles podem se encontrar com os seus interesses, mas contanto que o resultado seja fazer o que é o correto. E não você subordinar uma ação a um interesse político ou ao lucro de uma empresa. Esse é o cuidado que temos de ter. No Brasil, e também em outros lugares do mundo, temos péssimas experiências com isso, de pessoas que se aproveitam da situação, e eu acho que todo mundo está muito com medo disso, de que você tenha pessoas vindo como urubus para cima da carniça. Pensando: "há aqui é um grande campo para eu vender as minhas obras de engenharia, para eu vender os meus negócios". Corre-se o risco de que esses negócios não sejam pensados como deveriam, que é o de criar um Rio Grande do Sul mais resiliente. Esse é exatamente o papel do poder público: organizar todos esses desejos, separar aqueles que fazem sentido daqueles que vão contribuir para a reconstrução do Rio Grande.
O Estado sofre com seca, agora enchente. É cíclico. Todas essas questões ambientais se voltam só para uma situação, uma só agenda? Ou são diferentes?
Quando a gente fala na agenda de clima, temos três níveis de atuação: o primeiro nível é tentar atacar o problema, que não é só no Brasil: as emissões dos gases que provocam essa crise climática. Precisamos fechar a torneira do problema, senão tudo o que estamos vendo vai piorar com o tempo. A segunda é a da adaptação, porque o planeta já aqueceu, então o clima já mudou. Você precisa adaptar-se para aquele problema que a gente não conseguiu resolver. É preciso entrar na cabeça dos governantes do Brasil e do Rio Grande em especial. Reconstruir adaptando, reconstruir se recolocando nesse novo estágio de comportamento do clima no planeta. O terceiro estágio é lidar com a catástrofe, que estamos fazendo agora. Vai acontecer mais seca? Sim, porque a mudança do clima potencializa a circunstância climática que já existiria naquela região. A seca vai se prolongar por mais tempo, acontecendo uma intensidade maior e o intervalo de ocorrências vai ser menor. Com a chuva, a mesma coisa. A gente vai precisar reconstruir o Rio Grande adaptando a essa situação que, infelizmente, pode acontecer. Pode trazer um transtorno muito grande para a saúde das pessoas. Então você estressa o serviço de saúde pública com doenças como dengue, zika, chikungunya, diarreia, desidratação, difteria. Então a gente precisa preparar nesses lugares o serviço de saúde, especialmente para esse tipo de acometimento, porque a população vai demandar mais isso. A mesma coisa vale para regiões que têm populações em grande escala morando em áreas de encosta. A mesma coisa vale para regiões em que a gente tem enchentes, a gente vai ter que se preparar para esse tipo de situação, com o orçamento escasso que encontramos nessas regiões. Mas vamos ter de realocar esse orçamento. Parlamentares, por exemplo, hoje mobilizam orçamento como nunca antes na história desse país. Precisam começar a pegar esse dinheiro das emendas e mandar para o benefício da população que os elegeu, como, por exemplo, para a reconstrução do Rio Grande. Então é isso que temos de cobrar dos nossos políticos em Brasília.
A gente vai precisar reconstruir o Rio Grande adaptando a essa situação que, infelizmente, pode acontecer.
De acordo com outras catástrofes, há como prever quanto tempo levaria essa terceira etapa?
É muito difícil, porque existe uma previsão de que o problema vai acontecer em algum momento. Agora, é muito difícil prever quando o desastre vai acontecer e o tamanho da intensidade. O Brasil tem hoje, nós não estamos às cegas, o Brasil tem hoje cerca de mil localidades mapeadas pelo Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais). Essas mil localidades estão, sob algum aspecto, sob risco de sofrer uma intervenção de clima extrema. Agora é pegar essas áreas, ver quais delas estão mais vulneráveis, verificar qual é o tipo de intervenção que precisa ser feita nessas áreas, qual é o plano para elas, quanto tempo demora, quanto precisa ser colocado de orçamento lá e começar a trabalhar em cima dessas regiões. Existem regiões que estão em risco extremo. Tem outras regiões que você, com obras mais simples, minimiza bastante o impacto na população. Tem regiões, por exemplo, em que não tem jeito, vai precisar fazer a evacuação de uma população, porque ali o risco de morte é muito iminente. Então, o mapeamento já está feito. É fazer esse plano de atuação e de intervenção nas áreas. A recuperação natural de áreas vai ser muito importante. Isso é um problema gigantesco porque tivemos legislações, inclusive no Rio Grande do Sul, de permissividade, de desregulamentação, de ir dando mais entrada em áreas que não poderiam ser habitadas. Foram sendo colocadas, por exemplo, pessoas na beira do rio, foi sendo retirada mata dali, foi se canalizando córregos, foi se diminuindo a capacidade de evasão desses rios, e isso foi deixando aquela localidade muito mais frágil. Se você tiver um volume de água maior, ela estará menos preparada para receber esse volume de água. Você está colocando em risco a população e toda a infraestrutura urbana. Vamos ter de repensar também nessas áreas. Não é simples, porque há um crescimento do meio urbano para cima dessas áreas. Só que são exatamente essas áreas que vão prevenir novas situações extremas no futuro.
Nunca se teve tanta informação sobre mudanças climáticas, mas também nunca se teve tanta desinformação propagada por redes sociais. Quais os impactos na prevenção?
Fake news mata, e a gente precisa encarar esse mal da forma como é. Fake news mata na saúde pública, matou na pandemia, mata quando você está numa situação de calamidade. E desestimula, inclusive, as pessoas a colaborarem. As pessoas param de se mobilizar para donativos, de se mobilizar para prestar solidariedade, para prestar uma ajuda à região. É um negócio terrível. Fake news se tornou um negócio hoje. Precisamos, urgentemente, regulamentar essas plataformas, as redes sociais, onde não há punição, não há responsabilização.