Foi um Jair Bolsonaro cauteloso, bem orientado e até demonstrando certo temor que concedeu entrevista ao programa Gaúcha Atualidade na manhã desta sexta-feira (23).
Mas o ex-presidente não deixou de proferir, como de hábito, imprecisões e inverdades.
Desta vez, evitou ataques explícitos à imprensa - ainda que tenha sido uma descortesia começar a conversa sem ser questionado pelos apresentadores, ocasião em que criticou a revista Veja por associá-lo, junto com o seu ex-ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações Marcos Pontes, a passeios no submersível Titan, que implodiu no Atlântico - algo, segundo ele, que o ligaria à tragédia.
Ainda assim, ao contrário de quando estava no Planalto, Bolsonaro evitou subir a voz. Ah, o poder… Nada como estar afastado dele para que se conheça, realmente, alguém.
Precavido, entre a ironia e o deboche, o ex-presidente evitou ser explícito ao questionar a lisura do processo eleitoral brasileiro.
- Posso ser preso em Porto Alegre - alertou, de novo com ironia, mas com certo receio
Em quase uma hora de entrevista, muitas vezes mediu as palavras. Lembrou que, como deputado, defende o voto impresso desde 2012. Certamente orientado por seus advogados, tentou comprometer o PDT, que o acusa na ação do Superior Tribunal Eleitoral (TSE) de tentar minar a eleição.
O argumento da incoerência é válido: os pedetistas, em vários momentos no passado, questionaram as urnas eletrônicas. Também seguindo o manual advocatício para não se comprometer judicialmente, o ex-presidente negou ter tido contato com seu ex-ministro da Justiça Anderson Torres enquanto ambos estavam nos EUA e rejeitou ter falado com seu ex-ajudante de ordens, o coronel Mauro Cid, desde a prisão do militar.
Negou até contatos com a cúpula das Forças Armadas entre o primeiro turno e 31 de dezembro, quando deixou o mandato, o que é, no mínimo, suspeito ou, no máximo omissão.
O comandente-em-chefe da nação não teria conversado com o alto comando de Exército, Marinha e Aeronática por três meses? Nem para decolar em uma avião da FAB no dia 30 de dezembro ao deixar o território nacional? Nem quando Brasília viveu uma noite de caos em 12 dezembro? Ou nem quando rodovias foram interrompidas pela Polícia Rodoviária Federal no dia eleição? Mas ok, cabe à Polícia Federal e à Justiça apurarem.
Questionado se buscou respaldo das Forças Armadas para anular o resultado da eleição, mais uma vez, Bolsonaro seguiu o manual jurídico.
- Desconheço ações nesse sentido - disse, não sem deixar aberta margem para questionamento.
- Mas, quando se fala em GLO (Garantia da Lei e da Ordem), artigo 142, estados de defesa ou sítio, intervenção federal, todos são remédios precisos na Constituição federal - acrescentou.
Remédios? Esse não foi o primeiro “ato falho” - proposital ou não.
Houve pelo menos outros dois. Ao se referir ao ministro Benedito Gonçalves , do TSE, afirmou que ele “apesar de estar em um tribunal político”... O ex-presidente, por certo, queria dizer (e se corrigiu) Corte eleitoral.
Em outro momento, questionou:
- O que fiz de errado para justificar cassar os direitos políticos?
Bolsonaro tentou se colocar como vítima. O que está em discussão é sua inelegibilidade por oito anos. Não seus direitos políticos, garantia de qualquer cidadão em uma democracia: se for condenado, não poderá concorrer a cargo público, mas manterá sua efetiva participação e influência nas atividades políticas através do voto e filiação partidária.
Ao se referir à minuta de estado de defesa encontrada na casa de Torres, ele questionou:
- Que golpe é esse que se escuda na Constituição? É um absurdo, dá até vergonha discutir um assunto desse. Que papelucho é esse? Outra coisa, também botaram na minha conta o 8 de Janeiro. Que golpe é esse dado no domingo, com cadeiras vazias? Qual chefe de Estado foi deposto, cadê as armas, cadê as Forças Armadas? Que golpe não existe sem Forças Armadas ou grupos armados, como aconteceu lá em Cuba em 1959.
Bolsonaro ignora que, hoje em dia, golpes de Estado não são cometidos por meio de quarteladas como no século 20, mas por meio de hiatos na Constituição ou pela ação política - e que democracia não se garante só com eleição, mas com liberdade de imprensa, opinião e independência entre os Poderes.
O ex-presidente cometeu ainda pelo menos um erro de informação. Sobre a reunião com embaixadores estrangeiros, em julho do ano passado, quando questionou o processo eleitoral, objeto de julgamento do TSE, Bolsonaro disse ter perguntado aos presentes:
- Algum país dos senhores adota esse sistema?
A resposta teria sido “Não”. Ora, 23 países utilizam urnas com tecnologia eletrônica para eleições gerais e outros 18 as utilizam em pleitos regionais. Entre eles, estão França e EUA (que tem urnas eletrônicas em alguns Estados). Os representantes de pelo menos esses dois países estavam no encontro no Alvorada - e certamente não concordaram com a frase.