O golpe de mestre de Matteo Salvini, o vice-primeiro-ministro italiano visto como inspiração pelo setor ideológico do governo de Jair Bolsonaro, começou a ser arquitetado em 1º de junho de 2018, quando, depois de uma briga fratricida entre os populistas italianos, uma improvável aliança se formou para dar sustentação ao governo da terceira maior economia da zona do euro.
A Liga, legenda de Salvini, e o Movimento 5 Estrelas (M5S), vencedores da eleição, mas sem maioria para governar sozinhos, formavam um coalizão um tanto artificial. Durou pouco mais de um ano.
Ambas as legendas são anti-establishment e catalisam o sentimento de rejeição dos italianos à política tradicional. O não à democracia representativa liberal varre parte da Europa, os Estados Unidos e a América Latina e elegeu líderes nacionalistas-populistas. Na Itália, entretanto, esse movimento tem diferenças sutis: enquanto a Liga (que emana da alta burguesia rica de Milão e Torino) encarna os ideais dos novos tempos do extremismo — eurocética e antiimigração —, o M5S (que dá voz aos pobres sulistas) tem discurso levemente mais ameno. Seu fundador, o comediante Beppe Grillo, sugere, por exemplo, um referendo sobre a União Europeia, mas o líder do movimento, Luigi Di Maio, vê a iniciativa como última alternativa. A Liga é abertamente anti-UE e xenófoba.
Ao encaminhar nesta sexta-feira (9) a moção de censura ao governo e exigir novas eleições, conduzindo o Executivo ao colapso, Salvini começa a pôr em marcha seu plano de poder e domínio da política italiana. Salvo um acidente de percurso, será o novo homem forte da Itália. Para isso, surfa na popularidade de 36% e aproveita o momento político: matreiro, esperou o resultado da eleição para o parlamento europeu, em maio, quando sua formação erigiu-se como maior força política nacional.
Salvini e a Liga integram a internacional populista que surgiu nos últimos anos para encarnar o descontentamento da classe média com a social-democracia pós-II Guerra. O político é talvez o que melhor encarna a estratégia desenhada por Steve Bannon, ideólogo do The Movement, para criar um movimento global de direita contra o chamado "globalismo", o suposto conluio internacional, financiado por elites progressistas, colocar em prática uma agenda de esquerda que estaria impregnada em Hollywood, no Vale do Silício, em decisões de Bruxelas e em universidades públicas mundo afora. A Itália é o laboratório das ideias das quais comungam Jair Bolsonaro, Victor Orbán, Benjamin Netanyahu e o próprio Donald Trump, além de Salvini. Não a toa Bannon deseja instalar no país a sede de uma "universidade populista".
Ainda que no sistema parlamentarista medidas com a moção de censura de Salvini sejam relativamente comuns — com governos que vão e vêm sem maiores traumas —, o momento político da Itália em particular e da Europa em geral sugerem incertezas.
Após registrar uma "recessão técnica" em 2018, a Itália teve crescimento zero do Produto Interno Bruto (PIB) nos primeiros seis meses de 2019. O continente, por sua vez, está sentado no divã discutindo sua identidade e o futuro após a saída do Reino Unido da UE e o avanço da extrema-direita no parlamento europeu. As eleições irão dizer definir o rumo que seguirá o país. Mas, com Salvini forte, não é de se surpreender que pode começar a ganhar forma o "Itaxit", a exemplo do Brexit. A pedra fundamental já foi cantada pelo conselheiro econômico da Liga, Claudio Borghi, em fevereiro.
— Acho que essa é a última oportunidade. Se, depois destas eleições (para o parlamento europeu), restarem as mesmas laranjas de sempre lideradas pela Alemanha para fazer as políticas econômicas, sociais e migratórias, em benefício da Alemanha e em nosso prejuízo, eu diria para sairmos. Ou mudamos (a UE) ou devemos sair — disse Borghi.
Salvini deve incomodar o que chama de "burocratas de Bruxelas", com decisões que irão contra os compromissos europeus assumidos pelo governo. Também poderá endurecer a fortaleza Itália, com o acirramento da política de fechamento do país aos migrantes. A UE vai gritar, e Salvini dará risadas. Afinal, quanto pior, melhor.