Volta e meia, escuto por aí especulações sobre o risco de guerra civil na Espanha por conta da crise separatista na Catalunha. Embora a tensão seja crescente, é muito cedo para falarmos da possibilidade de um conflito, como assistimos em outras crises separatistas mundo afora. Eu diria que essa chance é quase inexistente. Trata-se de uma disputa muito mais política do que étnica ou religiosa (componentes sempre explosivos), como assistimos, por exemplo nos Bálcãs nos anos 1990. Embora o referendo do dia 1 de outubro (considerado ilegal por Madri) tenha mostrado o voto em massa a favor da separação, pesquisas anteriores mostravam que os próprios catalães estavam divididos. Isso a duas semanas do pleito. Ou seja, quem saiu para votar naquele dia era apoiador do “sim” à independência. Quem era contra, ficou em casa. Não há uma unidade pró-separatismo entre a população.
Soou como trapalhada histórica o pronunciamento do presidente catalão, Carles Puigdemont, no parlamento na terça-feira: declarou a independência da Catalunha, para, seis segundos depois, suspendê-la em busca de diálogo. Tudo no mesmo discurso. Mas foi muito mais uma saída pela tangente, um estratagema para agradar gregos e troianos: mais precisamente conservadores de seu partido e a esquerda radical. E para ganhar tempo.
Pelo visto, deu algum resultado. A fala milimetricamente imprecisa de Puigdemont confundiu até o primeiro-ministro espanhol, Mariano Rajoy, que enviou nesta manhã de quarta-feira uma mensagem ao líder catalão, exigindo que ele explique se, afinal, declarou ou não a independência.
O próximo passo da crise deve ser o contra-ataque do governo de Madri, com o uso do artigo 155 da Constituição espanhola. Seu dispositivo é quase uma barreira simbólica, que nunca foi ultrapassada. Esse artigo fala em “coerção estatal”, exige que uma comunidade autônoma da nação, como é o caso da Catalunha, cumpra a Constituição e permite que o governo central adote “todas as medidas necessárias” para que isso aconteça. Daí o temor de intervenção militar, por exemplo. E, quem sabe, uma guerra civil.
Só que, diante de um olhar de lupa, é possível perceber que o artigo 155 é limitado. É mais uma ameaça. Ele não suspende, por exemplo, a autonomia da Catalunha - embora seja um último passo. Tampouco extingue os órgãos autônomos catalães, como a Generalitat, o sistema político regional, cuja presidência é exercida por Puigdemont. E, talvez mais importante diante da preocupação sobre um eventual conflito, o artigo 155 não implica, segundo juristas, uso das forças armadas. Não será desta vez que os mais alarmistas verão tropas ocupando Barcelona.
Então, o que o artigo 155 determina? Alguns órgãos centrais (de Madri) podem passar a exercer funções de órgãos do governo catalão, é possível uma intervenção no comando da Mossos d’Esquadra, a polícia da Catalunha, e também a suspensão repasses financeiros para o governo regional.
É uma espécie de ultimato, uma garantia constitucional dos governos centrais para manter a unidade em nações com comunidades autônomas (a Alemanha também tem esse dispositivo, embora mais rígido). Em 1989, foi usado pelo então primeiro-ministro espanhol Felipe González para neutralizar uma crise separatista nas Ilhas Canárias, outra das 17 comunidades autônomas espanholas.