Uma coisa que me irritou neste ano, aqui em Porto Alegre, foram os moradores de rua. E eles nunca haviam me irritado. Eu gostava deles, me compadecia deles, conversava com eles.
Lembro da noite em que minha mãe, na década de 80, abalada por ver um gurizinho quase pelado, decidiu botá-lo no carro e levá-lo para casa, e lá em casa ele tomou banho, jantou e vestiu minhas roupas. Desde lá, tentei levar adiante esse legado altruísta, ajudando aqui e ali como podia, mas neste ano me irritei.
É assustador como o aumento descomunal da população de rua – que, entre os adultos, cresceu 75% de 2008 para cá – foi me abrutalhando. Em qualquer esquina, qualquer sinaleira, qualquer porta de bar, restaurante ou shopping, lá estava um deles me pedindo ou me chamando ou me interrompendo ou me puxando. Em 2016, me acostumei a dizer não. Me acostumei a não sorrir. Me acostumei a ser seco, ríspido, indiferente, insensível.
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E nenhum deles me fez um grande mal. Não fui ameaçado nem assaltado – só me sentia incomodado. Foi o que bastou para uma casca grossa de impiedade e descaso me revestir de cima a baixo, e essa casca só amoleceu quando presenciei um ataque de choro. Faz 20 dias isso: passávamos de carro pela Borges de Medeiros e avistamos, eu e minha namorada, uma equipe da prefeitura removendo aquela multidão de sem-teto que se instalara no Viaduto Otávio Rocha.
– Que bom que liberaram o viaduto – cheguei a pensar, mas a cara daquela gente me desorientou.
Havia um senhor com um carrinho de súper, ele andava três passos para um lado, cinco passos para o outro, voltava para o mesmo lugar, olhava para os lados, andava mais um pouquinho, voltava de novo. E havia uma senhora sentada no cordão da calçada, ela tinha um olhar perdido e mirava o nada. Ainda refletia sobre aquilo quando girei o pescoço e vi a Marcela, ali dentro do carro, derramando um choro aflito e perene.
– Mas o que houve?
– Para onde eles vão agora? Eles tinham o grupo deles ali. Tinham as coisas deles ali. Eles se ajudavam, sentiam-se parte de alguma coisa. Eles vão para onde agora?
Para um albergue, pensei, mas preferi pesquisar. E descobri que aquelas pessoas foram retiradas de lá pelo DMLU, o departamento que cuida do... lixo. Descobri também que Porto Alegre tem 450 vagas em albergues para mais de 2 mil moradores de rua. E, nesses albergues, ninguém entra nem sai depois das 19h. Marcelo Soares, presidente da Fundação de Assistência Social, órgão responsável pelos sem-teto, disse que é injusto culpar apenas a Fasc porque "este fato social envolve a comunhão de várias áreas".
É verdade. Tanto é que, quando a UFRGS divulgou em dezembro a nova pesquisa sobre os moradores de rua, esperava-se encontrar na reunião representantes das secretarias de Saúde e Habitação. Não apareceu ninguém. Aliás, o Departamento Municipal de Habitação nem sequer respondeu às solicitações de Zero Hora, para uma reportagem, sobre o número de moradores de rua que aguardam na lista dos programas habitacionais.
Mas, voltando à Fasc, o Ministério Público deflagrou em outubro uma operação por suspeitas de corrupção, estelionato, crimes licitatórios, improbidade administrativa e lavagem de dinheiro na fundação. Quer dizer, 2016 foi muito mais do que o ano em que a água fedeu e a corrupção desceu aos esgotos (literalmente, vide o escândalo do DEP): foi o ano em que a Capital abandonou gente. Com 40 mil imóveis desabitados, segundo dados do Movimento Nacional da População de Rua, a única coisa que a cidade ouviu da futura administração sobre sua população miserável foi o seguinte.
– Nosso olhar está fechado em receita-despesa, e não estamos ainda de olho em questões específicas. Ainda não está no nosso horizonte isso. É uma questão que não podemos analisar – disse o vice-prefeito eleito, Gustavo Paim.
É contra isso que pretendo me irritar em 2017. É bem mais irritante do que os pedintes.