Era apenas mais uma ligação para minha mãe. Disquei número a número, pois é um dos poucos telefones que ainda sei de cor. Exibia para mim mesmo a boa memória que não tenho.
Atenderam do outro lado e dei minha entrada habitual: "Oi, mãe!".
– Querido – me responde ela – nem sabe, estava agora mesmo falando com a Nice e...
Não sei qual questão chegou antes ao meu cérebro: quem é a Nice? Ou a mais relevante: essa senhora é minha mãe?
Rapidamente me dei conta de que a Nice não era um problema, pois a voz não era a da minha mãe. Disquei errado. Por certo era mãe de alguém, mas o problema era que ela não só estava falando, como falava muito, demasiado. Não havia pausas entre suas palavras, era uma torrente de frases, como se não respirasse. Não era uma fala ansiosa, era cálida, mas intensa, sem chance para uma entrada.
Narrava seu cotidiano com a cadência de uma partida de futebol no rádio.
Eu não conseguia deter a correnteza para desfazer o lapso.
Enquanto o constrangimento pelo equívoco me paralisava, mais assuntos entravam em pauta. Meu desconforto tinha poucos segundos e já estávamos no terceiro tema. Esse envolvia o Pituca, que dou por certo ser da raça canina e provavelmente seu fiel escudeiro.
Pois o totó estava melhor, disposto, voltara a comer. Já tinha ouvido um latido abafado. Se tivesse que adivinhar, apostaria em um cocker velho.
Cogitei desligar. As ligações caem, acontece, e antes que tivesse que falar. Afinal, apenas uma palavra e cairia minha impostura de filho.
A questão é que já não conseguiria dizer que era um engano. Havia tanta informação e afeto envolvido, que desprezar essa conversa seria um pecado. Tinha que evitar uma desilusão para essa senhora que eu, involuntariamente, perturbei em seu final de domingo.
No quarto assunto, chegamos ao platô usual das conversas que tenho com a minha mãe: doença. Conheço bem o tema. Essa senhora desfilou sua saúde – bem no momento, apenas um resfriado que já está indo embora – e a dos vizinhos. No relato dos adjacentes soube que o senhor do 504 está com seus dias contados.
Enquanto ouvia que o vizinho não merecia esta sina de agonia, me dei conta como era igual ao discurso que ouço da minha mãe. Pessoas de idade falam dos de sua geração e do prazo que eles ainda têm. Falam da fragilidade de seus corpos, de suas dores, que só faltam atender pelo nome, dado o tempo pelo qual as acompanham. Falam das suas dificuldades de locomoção, dos óculos que estão sempre no lugar errado, dos dentes que duram menos que sua vontade de viver. Falam dos que recém desertaram da turma, falam de como estão sozinhos.
Como nunca antes, o corpo lhes pesa, não lhes dá descanso com as necessidades de cuidados. Não são hipocondríacos, realmente possuem um corpo que os abduz pelas exigências dos desgastes.
Nem três minutos e esse usurpador que vos conta já estava magneticamente engatado na fala com a mãe alheia.
E o mais estranho: entendia mais minha mãe do que se estivesse conversando com a original.
Bom, fala é modo de dizer, eu não dizia nada, só aham. E essa "fala" comigo era uma demonstração de como alguns velhos pedem pouco de nós, talvez a avidez seja pela escuta distraída que lhes dedicamos.
Fui salvo por alguém que surgiu à porta (a Nice?), e a senhora me exigiu que lhe ligasse em seguida.
Senti-me tão satisfeito com o telefonema, que esqueci de ligar para minha mãe. Portanto, peço desculpas em dobro, para minha mãe esquecida e para a espirituosa dona do Pituca, na esperança de que ela esteja melhor de seu resfriado e que seu cãozinho esteja bem. Não liguei de volta pois não sabia o número.