Os episódios e os sinais de que a Venezuela se afunda em uma crise institucional com ruptura entre os poderes são crescentes e inequívocos. O Conselho Nacional Eleitoral (CNE) suspendeu a coleta de assinaturas para a convocação do referendo revogatório do mandato do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, que começaria na próxima semana. O CNE "acata as medidas ordenadas pelos tribunais e determina o adiamento do processo de coleta de firmas até nova instrução judicial", assinalou o poder eleitoral em referência às sentenças que deixaram sem efeito a primeira coleta de assinaturas para solicitar o referendo.
As decisões judiciais "têm como consequência a paralisação, até nova ordem, do processo de coleta de 20% das manifestações de vontade (...) na qual o Conselho Nacional Eleitoral estava trabalhando após concluída a primeira etapa da solicitação feita pela MUD (Mesa da Unidade Democrática), em abril passado".
O CNE enfatiza que os tribunais "ordenaram adiar qualquer ato que possa ter sido gerado pelo recolhimento do 1%" de firmas. A MUD, que acusa o CNE e a Justiça de submissão ao governo chavista, deveria realizar o recolhimento de 4 milhões de firmas (20% do padrão eleitoral) entre 26 e 28 de outubro, como último passo para a convocação do referendo revogatório.
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O secretário-executivo da MUD, Jesús Torrealba, reagiu à decisão afirmando que "a alternativa de luta prevista para este cenário está sendo analisada e acertada entre todos os setores".
- Fiquem muito atentos aos anúncios que fará a Unidade Democrática - disse Torrealba, garantindo que o governo não poderá "adiar a mudança". - Daremos a resposta a esta armadilha em todo o país, a Venezuela que quer a mudança e a paz, e será uma resposta contundente e serena.
De acordo com o CNE, a justiça emitiu tal decisão diante "dos crimes de fraude junto à funcionário público, falsidade ideológica e fornecimento de informações falsas ao poder eleitoral". O CNE fez um apelo "ao diálogo nacional como fórmula democrática por excelência para preservar a paz e a estabilidade" na Venezuela, e ofereceu sua ajuda na "busca de melhores condições que façam prosperar este encontro". Só que é evidente o grau incendiário contido na decisão que tira da população uma via constitucional e legítima de mudança.
Os governadores chavistas Tarek El Aissami (Aragua) e Francisco Ameliach (Carabobo) anunciaram que os tribunais penais de seus Estados deixaram "sem efeito" por "fraude" o recolhimento das assinaturas de 1% do colégio eleitoral, feito há quatro meses pela oposição para realizar o referendo. Pouco depois, o governador de Bolívar, o também governista Francisco Rangel, informou sobre a mesma decisão para sua região. A Justiça também impugnou a coleta de firmas no Estado de Apure. O governo havia apresentado 8,6 mil ações contra o recolhimento de 1% das firmas, acrescentando que a MUD incluiu assinaturas de falecidos, menores de idade e condenados.
Na quinta-feira, antes do anúncio do CNE, Maduro se referiu a "uma fraude gigantesca" no recolhimento de assinaturas.
- Eles sempre foram fraudadores. Não colocaram 50 mil mortos agora mesmo na fraude que fizeram? Não falsificaram as firmas de 500 mil pessoas nesta coleta de firmas? - disse o presidente venezuelano.
A MUD vinha alertando há dias para possíveis decisões contra o referendo por parte da Justiça e do poder eleitoral.
- O governo hoje nos empurra para um cenário muito perigoso e de agravamento da crise. Maduro se declarou em desobediência e não respeita a Constituição - declarou o ex-candidato presidencial Henrique Capriles.
A MUD previa superar com folga o mínimo exigido de 20% de assinaturas necessárias para a realização do referendo, diante da enorme impopularidade de Maduro devido à grave crise socioeconômica (desabastecimento de 80% dos produtos básicos, inflação anual estimada em 720%, violência endêmica etc).
Na segunda-feira, o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) já havia criado um obstáculo ao referendo ao decidir que o recolhimento de firmas deveria observar 20% do total de eleitores de cada um dos 24 Estados, e não do conjunto do país.
A oposição rejeitou tal exigência, alegando que a lei determina as assinaturas de 20% do total do eleitorado em nível nacional e não por regiões, mas salientou que isso não seria um problema.
Na terça, a presidente do CNE, Tibisay Lucena, informou que as eleições regionais (governadores) estavam adiadas do final deste ano para o "primeiro semestre de 2017", e não explicou as razões da decisão. A MUD, que triunfou com folga nas legislativas de dezembro do ano passado, acredita que terá uma ampla vitória na eleição de governadores. Há quatro anos, o chavismo elegeu 20 dos 23 governadores - e é evidente que o governo quer manter esse cenário.
Conforme a pesquisa mais recente do Datanálisis, 76,5% dos venezuelanos reprovam a gestão de Maduro, 62,3% querem sua saída do governo e 90,5% avaliam negativamente a situação do país. O governo quer segurar essa onda.
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A oposição venezuelana advertiu que o governo está levando o país um "cenário muito perigoso", após a suspensão do processo do referendo revogatório.
- Simplesmente não há estado de direito. É uma ditadura produto de um golpe de Estado continuado - reagiu o presidente do parlamento, de maioria opositora, Henry Ramos Allup, fazendo coro com Capriles, segundo quem o governo está levando o país a "um cenário muito perigoso e de aumento da crise".
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Luis Emilio Rondón, único dos cinco reitores do CNE próximo à oposição, disse não compartilhar a decisão porque "medidas cautelares penais não devem penalizar a expressão da soberania popular". O constitucionalista José Ignacio Hernández afirmou que a decisão do CNE é "totalmente" contrária à Carta Magna, já que "um tribunal penal não pode anular um processo comicial".