O neurocientista Carl Hart lançou uma obra extraordinária sobre a questão das drogas: Um Preço muito Alto (Zahar, 2014). Com ampla explanação, mostrando estudos e pesquisas, o autor vai contestando e demolindo o edifício mítico em que se assentam nossas crenças sobre as drogas.
Quando entramos nos domínios do prazer, a inteligência nos abandona e tanto julgamos quanto classificamos as pessoas pelas suas formas de gozo. Funciona ao modo de: diga como obtém prazer e direi se te aceito. Assim é no sexo e assim é com as drogas.
O autor é negro nascido na Flórida. Pai alcoolista, mãe atrapalhada, criado por parentes, viu a irmã recebendo uma bala perdida, os amigos e colegas indo presos. Recebeu o cardápio básico de violência e exclusão das comunidades pobres. Por viver isso, e ver o vício como causador da miséria real e moral de sua comunidade, Carl decide estudá-lo. Partiu daquilo que ainda é o senso comum sobre as drogas, e por isso nos convence ao mostrar como suas ideias tomaram outros rumos.
O livro é ímpar: vida, formação e teoria se misturam. Também é valioso para pensar o racismo, mas o que mais me interessou foi como ele se tornou cientista. Nessa trajetória árdua, ele insiste na dificuldade que foi sair do inglês das ruas e adquirir um domínio maior de sua língua. Afirma que, sem adquirir uma forma mais complexa de expressar-se, nunca teria virado cientista nem entendido o mundo. É um relato sincero e raro da sua limitação, e do esforço que fez para superá-la.
Gosto de uma expressão cara ao Luís Augusto Fischer: a cultura é algo que necessita receber uma demão por dia. É a esse sem-número de referências que quem é bem-nascido, ou teve boas escolas, ganha cotidianamente, sem dar-se conta, que Carl refere-se. Quem não passou por isso sente-se fora do jogo, não sabe se o lugar citado pertence à geografia ou a um mundo imaginário, não entende alusões a coisas que deveria saber, nem pistas tem do que seja. Citações elementares como: um sorriso de Mona Lisa, ou o calcanhar de Aquiles, ou ainda o que sejam os brioches de Maria Antonieta já o derrotam. Até aqui estamos no âmbito da cultura, mas ele também fala do léxico e de adquirir possibilidades de traduzir matizes mais sutis de significados.
Gostei do depoimento, porque a forma mais equivocada de tratar a questão da defasagem cultural passa por tentar valorizar a suposta benesse da forma simples da linguagem, confundindo cultura popular com carência educacional. A primeira acrescenta, a segunda priva. Ao transformar a deficiência em virtude aliena-se ainda mais quem não teve acesso ao patrimônio cultural comum. Como todo populismo, parece que protege o fraco, mas o deixa ainda mais desguarnecido.