É curiosa a corrida de obstáculos e contra o tempo que se estabelece a partir de agora na Venezuela. A oposição venezuelana entregou nesta segunda-feira um total de 1,85 milhão de assinaturas ao Conselho Nacional Eleitoral (CNE) pedindo a convocação de um referendo revogatório contra o presidente Nicolás Maduro. "Entregamos hoje ao CNE 80 caixas, cada uma com 2,5 mil planilhas, de um total de 200 mil planilhas, contendo um milhão e oitocentos e cinquenta mil assinaturas", tuitou o porta-voz da oposição Jesús Torrealba.
Por que agora se abre uma corrida? Porque, ora, veja bem como funciona: o referendo podia ser solicitado uma vez que o presidente cumprisse ao menos metade do seu mandato, o que ocorreu em 19 de abril. Para remover Maduro em um referendo, é necessário o apoio de 7.587.532 eleitores (número de votos com os quais foi eleito) mais um. Além disso, exige-se a participação de pelo menos 25% dos inscritos no registro eleitoral. Até aí, aparentemente, tudo tranquilo para a oposição venezuela. Só que vem o detalhe no qual os governistas trabalham: se o referendo ocorrer depois de 9 de janeiro de 2017 e Maduro perder, a Constituição prevê que o vice assuma o cargo. Veja bem, na Venezuela o vice é escolhido pelo presidente sem que necessariamente tenha integrado sua chapa. Maduro pode perfeitamente pôr ali um laranja, e está feita laranjada.
Um chavista bem fiel permaneceria dando as cartas.
A oposição está convencida de que quantidade de feriados baixados por decreto pelo governo sob a alegação de que precisa economizar energia elétrica, na verdade, é uma manobra com o objetivo de jogar o plebiscito para o ano que vem. Você duvida? Nos serviços públicos, só se trabalha dois dias da semana!
–– Nos deram 30 dias (a partir de terça-feira 26 de abril) para recolher as assinaturas. Nós o fizemos em tempo recorde – afirmou Torrealba, em nítida preocupação com o tempo.
O governo, evidentemente, tratará de amorcegar o quanto der.
O CNE, composto por chavistas, deverá constatar em um prazo de cinco dias o número e, depois, convocar os signatários a ratificar o apoio em outros cinco dias contínuos. Apenas depois da validação, o CNE autorizaria a coleta de 4 milhões (20% do padrão) para convocar o referendo.
Ciente disse, Torrealba diz:
– Também vamos fazer em tempo recorde. O país quer sair deste governo.
Só que, claro, nem sempre 2 + 2 = 4. Na Venezuela, raramente.
Tania D'amelio, diretora do CNE, disse no Twitter que, para começar a verificação das assinaturas, "é necessário cumprir o período de 30 dias fixado para a coleta de 1%" do padrão, ou seja, a partir de 26 de maio.
Ou seja, de nada adiantou a pressa da oposição.
Mais: no poder desde 2013, após a morte de seu mentor Hugo Chávez, Maduro anunciou que formou uma comissão para revisar as assinaturas. E, claro, fará de tudo para tornar o processo ainda mais lento.
– O referendo é uma opção, não uma obrigação. Aqui, a única coisa que é obrigação são as eleições presidenciais e serão em 2018, dezembro de 2018. É a única obrigação que temos – disse Maduro a milhares de simpatizantes no Dia do Trabalho, ignorando que é obrigação, sim, se as assinaturas forem colhidas.
Mas aí vem outra pérola: diante da hipótese de ter que deixar o poder por via constitucional, ou derrubado por um golpe de Estado, Maduro convocou seus partidários a se declararem em "rebelião" – mas de forma "pacífica", procurou ressalvar. E aí veio a frase recheada dos tradicionais jargões:
– Se algum dia a oligarquia fizer algo contra mim e conseguirem tomar este palácio, por uma via, ou por outra, eu ordeno a vocês que se declarem em rebelião e decretem uma greve geral indefinida, até obter a vitória frente à oligarquia. Uma rebelião popular com a Constituição na mão.
Uau!
Fico pensando: o papa Francisco mandou carta a Maduro se dispondo a mediar o diálogo entre o governo e a oposição. Na boa, outro dia chavistas agrediram a socos um líder oposicionista que participava de protesto contra a crise energética. Não pegou nada! Enquanto isso, há presos políticos, todos de oposição, encarcerados por supostamente terem incitado a violência numa onda de manifestações em que os mortos foram opositores.
Será que existe qualquer possibilidade de diálogo honesto?
...
Agora, números e evidências: pesquisa recente da Venebarómetro indicou que 68% dos venezuelanos desejam a saída de Maduro e novas eleições, enquanto 84% consideram negativa a situação do país. A Venezuela enfrenta uma forte recessão desde 2013. No ano passado a contração foi de 5,7% e a inflação chegou a 180,9%, a maior do mundo. Em 2016, sabe-se que superará com folga os 200%. O país também enfrenta a escassez de alimentos, remédios e outros produtos básicos, assim como cortes de energia elétrica programados pelo governo em consequência da seca. Aí, a gente se lembra que Maduro foi eleito, três, ainda sob a comoção da morte do líder Hugo Chávez, a quem sucedeu. Venceu Henrique Capriles por 1,5 ponto naquelas circunstâncias! Não havia ainda a crise violenta, que ainda conta com taxas elevadas de homicídios. Claro que o governo joga com o tempo...