A América Latina toda vive um momento de ebulição institucional, incluindo de forma muito especial o Brasil. Ao mesmo tempo, relatos sobre as ditaduras militares que assolaram nossos países décadas atrás continuam sendo feitos, como feridas abertas. E servem de alerta: se a classe política vive uma profunda crise, sempre é importante termos no radar o que significam regimes autoritários e de exceção. A História mostra os caminhos a não serem trilhados.
The New York Times traz à tona esta história:
A cena vem assombrando Guillermo Padilla há mais de 40 anos. Em 1973, Padilla, então com 18 anos, era soldado do exército chileno e fazia uma patrulha com sua unidade em uma cidade do sul quando o dono de um supermercado denunciou seu próprio filho, acusando-o de fornecer munições e alimentos a um grupo de guerrilheiros. Os soldados jogaram o jovem em um poço e começaram a atirar nele. Depois, arrastaram seu corpo ensanguentado e cheio de balas, colocaram em um caminhão militar e foram embora. Padilla estava em um carro ali perto e viu tudo. “Nunca soube para onde foi levado, nem mesmo seu nome. A experiência no exército me fez amadurecer rapidamente. Tornei-me soldado aos 18 anos e, depois de tudo o que vi, aos 21 já era uma pessoa diferente.” Padilla fez parte de uma unidade de comando que passou meses vasculhando cidades e postos remotos do Chile no final de 1973 à procura de armas e de pessoas suspeitas de fazer oposição à ditadura militar do general Augusto Pinochet. A unidade invadia casas, prendia e torturava suspeitos e matou pelo menos 30 pessoas, conta ele. Padilla admite que participou de várias execuções como parte do batalhão de fuzilamento. “Eu não sentia nada”, afirma. Mas agora, segundo ele, não consegue "tirar a imagem dessas pessoas" da sua cabeça.
Sob sucessivos governos civis, o Chile vem investigando os abusos aos direitos civis durante o regime militar. Mas o progresso tem sido lento. Mais de 1.370 agentes militares, policiais e civis foram indiciados, condenados ou sentenciados por crimes contra os direitos humanos. Desses, apenas 117 foram presos, de acordo com um relatório divulgado em dezembro pelo Programa de Direitos Humanos do Ministério do Interior. Até agora, nenhum recruta foi mandado para a cadeia. Os juízes têm tratado esses soldados de maneira benevolente, esperando que apareçam para ajudar a desvendar a verdade. “Eles são uma fonte de informação valiosa. Estavam sujeitos a uma hierarquia militar estrita e forçados a obedecer a ordens que não podiam recusar. Nossa lei permite certos benefícios se cooperarem, assim eles podem se livrar do peso de carregar segredos”, explica Mario Carroza, juiz que cuida de mais de 200 casos de direitos humanos.
Como milhares de outros recrutas, Padilla carrega as cicatrizes emocionais de ter sido forçado a testemunhar ou cometer atrocidades – muitos eram obrigados a bater, matar, torturar ou estuprar. Ainda sentem a vergonha e o medo que foram injetados neles enquanto passavam da adolescência para a maturidade quase da noite para o dia, e temem retribuições, a rejeição da família e dos amigos ou a cadeia. Mas, enquanto muitos relutam em revelar os segredos do passado, Padilla fala abertamente sobre suas experiências. “Os outros me dizem para não mencionar as execuções e me lembram de que tenho casa e família. Minha mulher também não gosta, mas perdi o medo”, conta ele. Padilla, 62 anos, foi recrutado pelos militares cinco meses antes do golpe que derrubou o presidente socialista Salvador Allende, em setembro de 1973. Ele nunca imaginou o que estava por vir.
De acordo com um relato oficial de prisões e torturas durante os 17 anos da ditadura de Pinochet, depois do golpe, o regimento Puente Alto, de Padilla, manteve prisioneiros em vagões de trem, vendados, amarrados, sem comida ou água. Muitos detentos eram torturados e violentados. Por anos, ele toma remédios para dormir e anseia pelo perdão das famílias das vítimas. Mas hesita em se aproximar delas; diz que não sabe como, consciente de que a sociedade encara os soldados como criminosos. Pai de três filhos adultos, Padilla e sua mulher há 40 anos vivem em uma casa modesta e arrumada em Cajón del Maipo, uma área montanhosa fora de Santiago, a capital. Ele opera máquinas pesadas em um projeto de barragem no Alto Maipo.
Padilla queria entrar para o exército. Ele gostava do uniforme e da vida militar e não tinha interesse em política. É simpático e falante, mas seus olhos se enchem de lágrimas quando se lembra dos eventos por que passou. Dias depois do golpe, recorda-se, um tenente de seu regimento, Aníbal Barrera, escolheu um grupo de recrutas para fazer parte do pelotão de fuzilamento. “Não queríamos ir, mas ele gritou e nos insultou e ameaçou dizendo que, se não concordássemos, também seríamos mortos”, conta Padilla. Um prisioneiro foi jogado de bruços em um caminhão, e o oficial e os soldados o levaram para La Ballena Hill, em Puente Alto. O prisioneiro não estava vendado, mas foi colocado de costas para o pelotão. Então veio a ordem para que os soldados atirassem. A história de Padilla corresponde aos registros da execução de José Rodríguez Hernández, preso pela polícia na rua carregando livros marxistas, entregue ao regime e morto em La Ballena em 14 de setembro de 1973. Décadas mais tarde, Barrera e o comandante do regimento, coronel Mateo Durruty, admitiram o assassinato. Em 2011, Durruty foi condenado a quatro anos de liberdade condicional. Barrera não chegou a ser acusado.
Padilla não foi identificado como membro do pelotão de fuzilamento e nunca foi chamado ao tribunal para testemunhar sobre esse ou qualquer outro crime. Ele tem passado décadas tentando se convencer de que não é um assassino. “Eu atirei em pessoas, mas não sei se matei porque não sei se meus tiros foram os que acertaram. Ou não quero acreditar”, diz. E completa: “Isso tem me devorado todos esses anos.”