Depois de quase dois anos morando em hotel e, portanto, dona de uma extensa e minuciosa pesquisa das não muitas opções de estadia em Porto Alegre, cheguei àquele ponto em que todos os hotéis parecem o mesmo e à conclusão de que usam exatamente o mesmo amaciante de roupa e os mesmos produtos de limpeza.
E quando você não suporta mais o cheiro dos hotéis, qualquer alternativa é válida, até casa de parente. Então, pra não correr risco e mesmo apesar da minha resistência, aluguei um apartamento na cidade.
Zona boa, teoricamente segura, apê novinho, mobiliado com bom gosto, tem até porteiro que diz bom-dia todo dia. O prédio tem serviços "de confiança" à disposição, ponto de táxi na esquina, bons cafés e restaurantes, que dá pra ir caminhando, e é praticamente vizinho de parede do melhor japonês da cidade: o Daimu. Como bônus, no edifício em frente mora um pianista e professor de piano que ensaia todos os dias à tardinha, mesmo quando o aluno é fraco, o volume não incomoda e ainda inspira devaneios.
Tudo estaria bom, não fosse pelo fato de que entre meu prédio e o Daimu está espremido o pequeno Obah.
O Obah é um hostel moderninho com preços módicos, decoração colorida e descolada que recebe hóspedes do mundo todo.
No Obah, ninguém nunca ouviu falar na lei do silêncio e desconhecem qualquer traço de consideração com o mundo ao redor. No Obah, os preços baratos atraem tanta gente, que, imagino, todos os cômodos foram transformados em dormitórios com beliches e portanto ninguém consegue dormir até o último hóspede chegar da rua e sem muito constrangimento transformaram não só a pequena laje como a calçada - sim a calçada - em sala de estar.
Ou seja: ninguém dorme.
Nem os torcedores argentinos, nem a cantora desafinada que assassina novos e velhos baianos e nem os europeus, que aliás devem estar até agora se perguntando se o Brasil é aqui, e onde fica a praia. Também não dormem os vizinhos e, claro, muito menos eu, que já tenho uma dificuldade tremenda pra sossegar.
- Quem fala?
- Boa noite, é o Leonardo do Obah...
- Boa noite seria um exagero Uma perguntinha?
- Pois não?
- Esse pessoal tentando cantar comprou o pacote Laje que dá direito a violada até vagar o próximo beliche?
- Como?
- Passa pela cabeça de vocês que nem todo mundo está de férias Leonardo do OBA?
O barulho para.
Fico então no escuro pensando quando foi que deixei de fazer parte do grupo de adolescentes barulhentos para ser a coroa do prédio ao lado? Quando foi que parei de roubar o carro do pai e cantar pneu Caracol abaixo em campeonatos de pega e passei a rolar na cama incomodada pelo ronco da moto que desce a Padre Chagas?
Uns cantam, outros reclamam insones. É tudo igual, mas, agora, ao avesso.
Olho pela janela e vejo o Leonardo pedindo pra gurizada baixar a bola e de repente me vejo lá: magrela, 20 anos, sono zero, tesão a milhão e nenhuma noção de o quanto a baderna e a gritaria podem estar infernizando a vizinha que ameaça chamar a polícia.
Então, em uma espécie de epifania sonolenta, me dou conta das camadas, das fatias de vida que se empilham e se desenrolam em espiral, como em um estacionamento de shopping. Em alguns pontos, você se enxerga no andar de baixo - no caso, literalmente - e, em outros, se fizer um pouco de esforço, pode se ver no andar de cima, onde além do terraço, as nuvens e o céu azul anunciam novos patamares.
Já de férias, longe do Obah e tratando de adiantar o artigo deste domingo, paro de escrever e vou até a janela. Na praia, pessoas tomam sol desafiando o verão carioca (e a morte) assando vivas a 45 graus! Sim, admito, já passei Rayito de Sol e até mesmo uma mistura hippie de óleo de urucum. E, além de cozinhar na praia, de quebra, ainda vestia branco à noite, pra realçar o bronze!
Impensável eu sei, mas pura verdade.
No céu azul sem uma nuvem sequer, pelo menos uma dúzia de asas e paraglydes sobrevoam a Pedra da Gávea. Penso, então, na quantidade de vezes que voei pendurada em helicópteros e aviões sem porta, com câmeras amarradas do lado de fora, alheia a noções básicas de aerodinâmica e a qualquer regra de segurança.
Na época, meu anjo da guarda devia ganhar hora extra e salário insalubridade Assim como os anjos do pessoal do Obah, que me distraem com esse tipo de divagação, me fazendo esquecer da caixa de ovos ou do plano de comprar um espingarda de chumbinho.
Talvez os círculos mais altos da espiral tragam uma certa noção de ridículo e de perigo que a cantora do Obah desconhece, talvez tragam um pouco de cansaço e impaciência, ou só a percepção de que a vida é curta e já não há tanto tempo a perder.
Mas, a partir dessa perspectiva, melhor não dormir e cantar! Afinal, a lei hoje não dá conta nem de assalto, sequestro ou assassinato e é provavelmente de mau gosto ou risível fazer uma denúncia de perturbação de silêncio quando a polícia não consegue nem dar jeito em quem explode e arrasta, por exemplo, um caixa eletrônico pelas ruas, ou vale lembrar a maior estatal do país.
- Alô, Leonardo?
Dá pra pedir pro pessoal retomar a cantoria?
Tô descendo!