Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Quando o Verissimo e eu éramos jovens, um cataclisma ocorrido mais ou menos à época do pleistoceno, havia um cartum chamado O Outro Eu do Comendador Ventura. O Comendador Ventura era um personagem circunspecto, um aristocrata de fraque e cartola; mas o seu outro eu, que o artista fazia brotar no último quadro, dizia tudo que o Comendador ocultava. Isto dito, peguem este senhor calvo que é o pai da Família Brasil. Durante os últimos meses nós o acompanhamos na praia, às voltas com um dilema hamletiano: deveria ou não puxar o cordão do biquíni da jovem que está à beira-mar?
É um conflito tanto mais sério por duas razões: primeiro, a bela sequer suspeita que o provecto senhor seja capaz de um ato tresloucado. Depois, digamos que o pobre homem crie coragem e puxe o fatídico cordão (um gesto para ele equivalente ao de apertar aquele famoso botão nuclear). O que fará, diante da esplêndida visão? Tentará, desajeitadamente, um ataque sexual? Terá um infarto? Fugirá? Em suma, Verissimo captou, em poucos traços e com muito humor, a condição, e os conflitos, do sexagenário brasileiro.
Não é de hoje que Verissimo é o grande intérprete do Brasil. Mas a maneira como chegou lá foi das mais surpreendentes. Começou aqui em ZH escrevendo sobre culinária (uma paixão, hoje reconheço, mais adequada aos provectos). Seus comentários não eram assinados, mas todo o mundo se deu conta de que um fenômeno inusitado estava acontecendo: sob comentários anônimos e despretensiosos escondia-se um talento descomunal. Daí para a coluna assinada foi um passo e para conquistar o país só mais outro passo.
Esta carreira fantástica ensina, a propósito, uma grande lição. Verissimo se tornou o que é não por ter se dedicado a uma "carreira". Ele tinha o exemplo do pai, claro, e teve oportunidades que nem todos têm (viveu nos Estados Unidos, o que sempre dá à pessoa uma perspectiva diferente do Brasil) mas basicamente chegou onde chegou graças à uma enorme coerência e à uma não menor honestidade intelectual. Quando todo o mundo ainda se deleitava com o Plano Real, ele foi o primeiro a apontar as contradições do governo Fernando Henrique, contradições que hoje são visíveis para todos (e reconhecidas até por Paulo Francis).
As crônicas de Verissimo, suas histórias da vida privada, seu cartum, tudo isto compõe o quadro mais completo que alguém já traçou de nosso país. Mais que o criador do analista de Bagé ele é o analista do Brasil. Colocou-nos a todos num imenso divã e transforma nossas fantasias em arte. A um preço muito menor que os dos analistas de consultório.
E apesar de tudo Verissimo continua um homem simples. É quieto porque é quieto mesmo, não porque se recuse a dar declarações. É um grande marido (o que não é difícil, quando a esposa é a Lúcia), um grande pai da Fernanda, da Mariana, do Pedro, um filho, um grande filho para a Mafalda, um grande amigo para os seus muitos amigos. Como Erico, é fiel à sua cidade; poderia morar no Rio ou mesmo em Nova York - o tipo de trabalho que faz não perderia nada com isto - mas não, prefere continuar na Felipe de Oliveira, uma casa que, desde os tempos do Erico, é acolhedora.
É verdade que Verissimo gosta de viajar; aliás, graças às suas viagens tornei-me um cronista diário malgré moi, uma tarefa da qual fui encarregado pelo Lauro Schirmer e que me precipitou num estado de terror existencial raramente sentido. Mas aí me lembrei da história do homem que levou a um empresário de diversões um cachorro que, segundo ele, cantava. O empresário duvidou e, então a um comando do dono, o cão entoou Una furtiva lagrima de forma arrebatadora. Maravilha, gritou o empresário, entusiasmado, como é que o senhor conseguiu isto? Aí o homem explicou: na verdade, o cão não canta, ele só imita o Caruso.
Durante o tempo em que imitei o Verissimo me senti imensamente feliz. Não era por causa do espaço no jornal, era por causa do Luis Fernando, era por causa de sua aura magicamente afetiva, e da qual continuo a partilhar. Agora, Verissimo fez 60 anos. Não me resta outro caminho senão imitá-lo. Só espero tornar-me o esplêndido sexagenário que ele é.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
-06/11/2007: "Ler faz bem à saúde"
-19/04/1997: "O ferrão da morte"
-30/11/1997: "Os estranhos caminhos da história"
-05/03/2000: "A gloriosa seita dos caminhantes"
- 08/11/2008: "A Bíblia como literatura"
- 21/03/1998: "Urgência: a visão do paciente e a visão do médico"
- 30/04/1998: "Uma cálida noite de outono de 48"
-16/04/2000: "A imagem viva do Brasil"