Desde que Cabral aportou por aqui, há quase 523 anos, o Brasil vem se submetendo a uma nefasta poção que combina proximidade com o regente de turno para extrair benesses, uma vocação para nutrir mamutes estatais e uma burocracia que se apega ao Estado como o senhor de todas as coisas e haveres. O resultado do que se chama de patrimonialismo não tem sido animador, como se constata pelas dezenas de milhões de brasileiros que nem sequer sonham em ascender a uma classe média.
Com uma ou outra momentânea exceção pontual, nenhum governo fez a transformação que deveria ter sido feita há séculos: desatrelar o Estado inepto da frente da economia para não só reduzir a corrupção e a ineficiência, mas também para desencadear uma revolução de empreendedorismo privado que não tivesse receio de investir em um país onde há tanto por se fazer.
Pois uma pesquisa do Datafolha de domingo passado envia sinais de alento para uma mudança da secular mentalidade patrimonialista: o apoio à privatização de empresas e serviços públicos saltou de 20% para 38% dos brasileiros. São ainda minoria, mas 63% dos mais jovens consideram os serviços privados melhores do que os estatais - e isso que eles não chegaram a conhecer o inferno de se viver sem telefone em casa porque não se tinha amigo ou parente na estatal de telecomunicações. Agora, se o serviço é ruim — e muitas vezes o é —, tem-se a opção de troca por outra companhia. Parece óbvio hoje, mas muita gente era contra isso.
Em poucos setores a cultura patrimonialista está tão enraizada quanto no saneamento. Ou alguém imagina que Lula deu uma canetada para enfraquecer o Marco do Saneamento porque os brasileiros, sobretudo os mais pobres, vivem em um paraíso de águas límpidas e esgoto tratado que seria agora ameaçado pela privatização? Como costuma ocorrer no patrimonialismo, é a intimidade com o regente — no caso, sindicatos contrários à mudança de um modelo obsoleto e ineficaz — que represa um futuro em que o interesse da maioria venha se sobrepor ao de alguns poucos.
Os patrimonialistas torceram o nariz para a privatização de aeroportos, sentem saudade da Vale estatal, acham os Correios o máximo e querem dividir conosco a conta da ineficiência das estatais, como ocorria na Usiminas. A siderúrgica, lembre-se, foi a primeira estatal a ser privatizada, em 24 de outubro de 1991. Eu estava lá, na Bolsa de Valores do Rio, cobrindo o leilão, ou melhor, a furiosa batalha campal contra a privatização que se desenrolava na praça em frente. Antes, a Usiminas sugava dinheiro público da segurança, saúde e educação para tapar seus rombos. Hoje, se dá prejuízo, o problema é dos acionistas privados. Esse é o milagre que se opera com o fim do patrimonialismo.