Como será que o preso Eduardo Cunha pensa?
No que pensa? Vai delatar? Como relataria sua história pública, que vem desde o tempo do Collor até o presente, em que está hospedado numa cadeia federal em Curitiba, tendo perdido cargo e majestade?
Essas perguntas passam na cabeça de muitos de nós e mais ainda na do Temer. E passaram também pela cabeça de um escritor de ousadia e talento. Ricardo Lísias, paulista, nascido em 1975, é o autor da façanha. O nome do livro em causa é, já por si, um caso: Diário da Cadeia, com Trechos da Obra Inédita Impeachment, tudo isso escrito na capa, com uma arte que simula grades de uma cadeia. E a assinatura: "Eduardo Cunha (pseudônimo)". Assim mesmo. Editora Record.
Assim que saiu, o livro quase foi embargado, por uma ação de Eduardo Cunha, o verdadeiro. Mas essa tentativa foi negada, primeiro no Tribunal de Justiça do Rio e depois no STF, em parecer que defendeu a ampla liberdade para a criação artística.
Foi só então que veio à tona o nome do autor, o citado Lísias, que preferia manter-se incógnito nesse caso. Não é o primeiro caso de escrita ficcional colada nos fatos objetivos, por parte do autor.
Fui ler o livro com muitas reservas, por vários motivos (e saí com grande ganho). Seria possível sustentar com qualidade um romance, tão colados a fatos tão notórios e tão atuais? Não é apenas Cunha que aparece com seu nome real, mas uma penca de outros protagonistas de cena atual – Michel Temer, Moreira Franco, Dilma, o procurador Deltan (aqui, Daltan), mas também Janaína Pascoal e figuras como Marilena Chauí. Só por isso, ler o livro já tem um encanto que, suspeito, deixará de existir daqui a poucos anos, dada a evanescência das coisas.
Dá o que pensar esse empenho do Lísias, conferindo um calor inesperado e raríssimo entre nós a uma narrativa longa, em geral fria e distanciada. Só por isso, já é digno de aplauso: tirar o romance da redoma confortável em que está metido é algo de grande valor.
São quatro camadas de texto: o principal é o diário da cadeia, em que Eduardo Cunha (pseudônimo) relata seu cotidiano entre 19 de outubro e 31 de dezembro de 2016, conversando com sua família e advogados. Já aqui uma mostra de maestria do autor: seu Cunha escreve com vezos que o Cunha real tem, como se referir aos "do PT", não a petistas, cometendo erros em regências e certos traços semânticos e citando a Bíblia à moda da sua casa.
O segundo nível se compõe do livro Impeachment, que o suposto autor escreve para desvendar a política brasileira desde PC Farias, por sinal personagem do romance. O terceiro nível é feito de citações literais de textos da imprensa brasileira no período. O quarto, finalmente, tem cartas e bilhetes de Cunha para uma série de personagens, tanto da política parlamentar quanto da, digamos, política judiciária atual.
Como este Cunha explica o esquema de corrupção associado a sua história? Simples: seus inimigos querem paralisar o Brasil, ao passo que ele e parceiros empenhavam-se em atender as "necessidades de empresários" e da "classe política", "dando emprego para as pessoas", motivo pelo qual as empresas expressam sua gratidão à classe política mediante uma "taxa de manutenção". Mas agora, lamenta Cunha depois da queda, transformaram em crime o que antes não era crime, com essa "ideologia de que pagar por fora é crime". Desde quando?!?
Enfim, um grande livro, que deve ter dado um enorme trabalho de pesquisa mas, suspeito, também deve ter rendido grandes gargalhadas, como as que eu dei ao ler certas passagens. Um festival de auto e de hetero-engano, num espetáculo de literatura viva.