Gabriel o Pensador começa a entrevista com um "bá". Apesar de carioca, ele tem uma ligação muito forte com o Estado. É quase gaúcho. O avô dele nasceu no Alegrete, minha terra. Talvez por isso a gente se dê tão bem.
Mas gosto também da música e do jeito que o Pensador vê a vida. E ele toca por aqui no domingo. Vocês ouviram a nova versão de Matei o Presidente? Animal. Eu não perderia este show. Então lê o papo com o cara.
Que episódio específico te fez escrever uma nova versão de Tô Feliz, Matei o Presidente? Qual tu acha que é o momento mais absurdo da política nacional ou do governo Temer nos últimos tempos?
Na verdade essa música não é sobre o governo Temer apenas, e sim mais um grito de revolta como outras que fiz durante vários governos. Abalando, FDP, Pega Ladrão, Até quando?, Nunca Serão e Chega, por exemplo, também têm esse espírito de desabafo diante dos absurdos. Absurdo foi uma palavra bem escolhida por você, e o absurdo da pessoa morrendo sem atendimento ou a violência absurda nos latrocínios ou estupros e na guerra do tráfico, assim com o absurdo das escolas e universidades caindo aos pedaços, são todos frutos diretos da corrupção absurda, do desperdício absurdo e da impunidade absurda que esperamos que comece a diminuir finalmente. A ideia de fazer essa letra incluindo um protesto mais direto com a frase "matei o presidente" veio do decreto da Renca, que era uma demonstração clara da mentalidade dos políticos do "eu faço o que eu quiser e a população que se dane". Mas durante a criação da letra eu pude falar não apenas do presidente mas de todos esses "demônios com suas maletas de dinheiro sujo de sangue de tantos brasileiros".
Para 2018, qual é a tua perspectiva?
Estou mais preocupado com a mentalidade dos brasileiros do que com os candidatos por enquanto. Tenho pena de constatar o quanto somos ingênuos e manipuláveis. Pessoas de várias idades e de correntes "ideológicas" seguindo palavras de ordem e repetindo pensamentos vazios, frases feitas, como débeis mentais. Uns desesperados por mudança, outros presos a velhas ideias, sem notar que os anseios de todos no fundo são bem parecidos, e é muito triste ver que as pessoas não querem ter o trabalho de pensar, de ouvir o outro, de pesquisar um pouquinho. A internet poderia ser usada pra tanta coisa boa, pra busca de informação, pro debate, mas é usada pra troca de ofensas infantilóides, pra manifestações de intolerância de todos os lados. E a internet é um espelho da realidade, só que nem todo mundo mostra essa face mais feia no seu dia a dia fora da web. Isso é preocupante, e seria bom se eu não fosse tão solitário entre os artistas no desejo de usar a arte pra discutir esses temas. Eu falo sobre a alienação desde o Playboy e a Loraburra. Isto me fez lembrar também uma música minha menos conhecida chamada Ãh!.
3. O rap sempre foi um meio de protesto Mas, em muitas situações, é possível ver uma regressão no Brasil. Que músicas (ou filmes, discos, séries, programas de TV) antigos, de 20, 30 anos atrás, tu acha que podem ser consumidos hoje como um exemplo de problemas que temos e ainda não conseguimos resolver?
As pessoas comentam com espanto como as minhas músicas mais antigas continuam atuais, mas se formos ver o que eu ouvi quando era criança, isso também continua atual. Brasil do Cazuza, Que país é esse e tantas outras. E antes ainda, Noel Rosa perguntava "onde está a honestidade?". O Brasil é antiético e hipócrita de berço. Todo o sistema funciona baseado no "jeitinho", no "pistolão", na compra de favores, na desigualdade de direitos e deveres. E os maus exemplos são abundantes e atraentes, desde o traficante na favela com um fuzil, uma moto e um belo par de tênis até o vereador ou deputado com sua fazenda ou helicóptero ou iate.
A regressão tem a ver com a inversão de valores, com a repetição desses padrões, com a sensação de que tudo isso é normal. Minha música Lavagem Cerebral (Racismo é burrice) eu já cantava bem antes de lançar o meu primeiro disco, invadindo palcos e mesas de debates pra falar sobre racismo, quando as pessoas fingiam que aqui não existia racismo. E hoje o racismo é crime, está na lei, mas as pessoas continuam demonstrando seu atraso mental nos estádios, na internet, e no apoio a discursos preconceituosos, não apenas contra os negros. Vamos cantar essa letra num beat diferente, eu e o meu guitarrista Udi Fagundes, um cantor e compositor talentosíssimo que veio da Restinga e hoje mora no Rio. E quando ele entrou na minha banda, me contou sobre a importância deste tema pra ele. Sempre falamos bastantes sobre essas coisas e eu sou fã desse gaúcho não só pela voz linda mas pela atitude e pela consciência. Vai ser um momento especial no Opinião quando ele largar a guitarra e virar rapper por uma música, e vai ser a "nossa música", racismo é burrice!
Voltando à sua pergunta, um personagem que estaria em alta hoje, muito atual, seria o deputado Justo Veríssimo, do Chico Anysio, aquele que dizia que "pobre tem que morrer", e "quero que o pobre se exploda". Ele se parece com alguns políticos de hoje, e talvez fosse até idolatrado e tivesse muitas intenções de voto se fosse real.
4. Tua relação com o Rio Grande do Sul sempre foi bem próxima. Fala um pouco sobre isso e conta como é a tua rotina aqui no Estado quando tu vem pra cá.
Bah, eu pensei até num "bah" pra começar essa resposta, porque na verdade nem sei por onde começar. Depende muito de onde estou e do tempo disponível, que normalmente é escasso parar passeios, mas só de estar bandeando por essas estradas, ouvindo esse sotaque e lembrando do passado da família do meu pai, já vem sempre uma emoção diferente. No Opinião vi uns bons shows de reggae, e vamos tocar um reggaezinho lá também. Vi Coldplay e Bob Dylan em Porto Alegre também. Mas o momento mais emocionante de todos ...foi no Alegrete, terra do meu avô. Ele tinha falecido uns 4 meses antes e eu só tinha ido lá na barriga da minha mãe. Era a primeira vez que eu pisava no Alegrete e já cheguei na hora da feira do livro, no Calçadão e disse que iria cantar uma música em homenagem ao vô Acélio Contino, acompanhado por um primo de São Gabriel e outros parentes presentes. Eu não esperava que o povo todo cantasse tão forte e com tanta emoção junto com a gente. E foi assim que cantei do início ao fim com as lágrimas correndo soltas o Canto Alegretense pela primeira vez na vida. Inesquecível e meus olhos se enchem de água só de lembrar.
5. Depois de 25 anos, tu te considera um artista realmente "sem crise"? O que te move hoje em dia? O que faz a tua mente continuar compondo, com vontade de pegar a estrada, subir no palco, etc?
Nunca fui "sem crise", acho que o que me move é uma constante vontade de transformar o mundo e a mim mesmo, e a certeza de que todos temos o poder de inspirar o próximo e de ser inspirados. Tenho sorte de poder me comunicar com tanta gente, e por isso inspirar e me inspirar mais ainda. Sempre busquei isso. Amo fazer o que eu faço e me arrepio literalmente nos shows e nas palestras, quase sempre. Isso é impressionante. Sou muito sensível e sei o significado profundo que pode ter uma simples frase gaguejada por um fã, ou um olhar. Acredito muito na força das palavras, e da música.Sem crise era só o nome de um disco, mas sou bem caótico, um pouco ansioso às vezes, outras horas meio zen demais, sempre questionador, mas procuro manter a vibe boa, ser gentil e atencioso. O que tem de diferente hoje em dia e não rolava muito é a troca rápida de informação com os fãs pelo instagram e pelo facebook. Antes eu respondia cartas, e tem umas que lembro até hoje. Agora a internet é um leque infinito e eu resolvi começar a falar com a galera pelo meu canal do youtube também. Meu primeiro bate-papo foi com o rapper Fabio Brazza, e já vou botar outros no ar.
O rapper leva ao Opinião (Rua José do Patrocínio, 834) o show Sem Crise, neste domingo, às 21h. No repertório, entram sucessos dos seus 25 anos de carreira, como Retrato de um Playboy, 2345meia78? e Cachimbo da Paz. A abertura fica por conta do músico angolano Kanhanga SportRap. Os ingressos custam a partir de R$ 55 (pista, promocional) nas lojas Youcom e Multisom e no link bit.ly/pensadorshow.