As pessoas que trabalham em emergências são especiais, naturalmente selecionadas pela capacidade de se opor à ideia da morte com tenacidade, sem se acomodar na aceitação de que todos morreremos e, portanto, nada mais natural que a toda hora ela se imponha. É muito mais adequado para a preservação da sanidade de quem trava o bom combate que nos mantenhamos inconformados com essa naturalidade biológica e pensemos viver como se fosse para sempre. Sem a preocupação de cronometrar esse tempo.
A experiência ensina que o imprevisto tem manhas de originalidade. Por isso, uma das tarefas médicas mais difíceis é a desistência das manobras de ressuscitação em traumatizado grave, especialmente quando a vítima, sendo jovem, teria muito mais vida por viver do que aquele que, circunstancialmente, está ali com a missão audaciosa de se opor à morte extemporânea.
A adrenalina transbordante nesta situação explica a energia colocada em cada manobra e a indescritível sensação de êxtase ao constatar que a danada se rendeu. Alguns, preconceituosos, atribuem aos doutores o complexo de divindade por esses momentos vitoriosos, porque ignoram que os médicos verdadeiros se contentam com a alegria silenciosa e genuína de terem sido capazes de fazer o que fizeram. Tanto é assim que, muitas vezes, a gratidão surpreende, por vir quando o autor da proeza já nem pensa mais no ocorrido, porque a vida continuou com suas pequena vitórias e grandes desistências.
Contrariando todos os escores de mortalidade, o paciente teve alta depois de quatro dias internado na terapia intensiva.
Da experiência do Rui Haddad, um notável cirurgião carioca, restou, ao menos, uma linda história. Vítima de um trauma severo, um homem de 35 anos foi trazido de ambulância e aportou no hospital em parada cardíaca, depois de um grave acidente de carro, num subúrbio do Rio. Com o coração sendo massageado no elevador, alcançaram o bloco cirúrgico. Não importa quando tempo decorreu nas manobras de ressuscitação, porque cada minuto parece uma eternidade enquanto se caminha nessa divisória em que ajudaria se a vida, ao menos, oferecesse um corrimão.
Contrariando todos os escores de mortalidade, o paciente teve alta depois de quatro dias internado na terapia intensiva. Semanas depois, novamente de plantão, o Rui foi abordado por um paciente que não conseguiu reconhecer, tal a transformação desde o dia em que estiveram separados por uma maca ensanguentada.
"Doutor, eu sou aquele paciente que só sobreviveu porque Sua Excelência, segundo os médicos do hospital me contaram, durante meu atendimento disse a eles, várias vezes, que não ia, de forma alguma, desistir de mim. E eu aqui estou."
Depois disso, por 41 anos, no Dia do Médico, do aniversário do Rui e daquele que chamou de "meu segundo nascimento", o telefonema se repete: "Sou eu, doutor, para agradecer à Sua Excelência por não ter desistido de mim."
Confiar em quem cuida tem essa exigência: é apostar que o cuidador seja do tipo que nunca desiste.