Nas emergências médicas é frequente a chegada de pessoas em parada cardíaca. Como o desfecho depende da instantaneidade da iniciativa, antes de discutir a duração do evento e os possíveis danos decorrentes disso, os médicos simplesmente põem em prática as modernas técnicas de ressuscitação. Vários pacientes se recuperam e alguns desses terão sequelas neurológicas secundárias, em geral proporcionais ao tempo em que o cérebro ficou sem oxigenação adequada.
Nos EUA, foram tantas as demandas judiciais contra médicos e hospitais com afã de buscar alguma compensação financeira pelas sequelas eventualmente apresentadas, que se chegou ao cúmulo: os médicos foram desaconselhados a prestar esse tipo de atendimento. De tal sorte que as pessoas que chegavam nas emergências em parada cardíaca eram consideradas mortas, para evitar incômodos futuros. Ou seja, a vida, e a possibilidade de resgatá-la, perderam em importância para o temor do atropelamento judicial.
No enfrentamento desse absurdo, os americanos criaram a lei do Bom Samaritano, que exime médicos e hospitais de qualquer ameaça de demanda indenizatória quando o serviço for prestado nesta condição extremada.
Este é apenas um exemplo de dano colateral decorrente da judicialização desenfreada na medicina moderna.
A experiência americana é muito mais antiga, mas nós, como plagiadores assumidos, ainda que com um atraso de pelo menos 30 anos, estamos empenhados em copiá-los, numa corrida maluca que pode levar ao colapso a medicina brasileira se as demandas judiciais continuarem neste crescimento exponencial.
Para se ter uma ideia, os gastos do Ministério da Saúde com demandas judiciais saltaram de R$ 197 milhões em 2010 para R$ 7 bilhões em 2015. Esta avalanche, gerada pela ânsia de todos usufruírem de direitos até há pouco insuspeitados, tem gerado uma enorme angústia nos gestores públicos, obrigados por lei a cumprirem a determinação ditada por juízes muitas vezes desprovidos de suporte técnico para essa tarefa.
Como os médicos muitas vezes prescrevem o nome de fantasia e não o princípio ativo dos medicamentos, o gestor, muitas vezes ameaçado de prisão, se vê premido a cumprir a ordem tal como prescrita, sem tempo para a licitação que permitiria racionalizar os gastos.
E, como era de se esperar, os mais ricos, habilitados a contratar os melhores advogados, terão maior chance de sucesso nos seus pleitos. E, mais uma vez, com as verbas assim solapadas, a saúde pública prosseguirá na sua sina de seguir piorando quando isso já não parecia mais possível.
Como em todos os países, as demandas mais frequentes envolvem medicações oncológicas, onde reconhecidamente se misturam novidades promissoras, promessas fantasiosas, charlatanices deslavadas e o previsível desespero que caracteriza a mais estigmatizante das doenças.
A propósito, uma pesquisa mostrou que 65% do dinheiro gasto com drogas anticâncer nos EUA foi utilizado em pacientes que estavam vivendo os seus últimos dois meses, destinando-se a terapias fúteis as verbas portentosas que poderiam ser investidas em pesquisas e em medicina preventiva, e que têm servido apenas para prolongar o sofrimento, subtraindo a naturalidade da morte.
Um simpósio recente, promovido pela Academia Nacional de Medicina, propôs uma força-tarefa com criação de câmaras técnicas especializadas que deem aos magistrados os instrumentos que permitam uma racionalização no deferimento dessas demandas.
Sem isso, a nossa já precária saúde pública sucumbirá. A racionalidade não pode permitir que o interesse individual se sobreponha ao coletivo, principalmente quando o objeto em disputa é a sobrevivência dos desvalidos que miram a atenção do Estado como uma divisória entre a vida e a morte.