Um dia desses, no final de uma aula sobre risco cirúrgico em que tinha insistido com a tendência moderna de operarmos com frequência crescente pacientes mais velhos, confiantes que ficamos dos resultados favorecidos pela moderna tecnologia, chamei a atenção para a importância de devolvermos o idoso à sua família com mesma condição mental que justificara a extrapolação dos limites etários, sem que parecesse imprudência.
Para reforçar a mensagem, disse que um avô de boa cabeça é um trunfo familiar, que desejava que todos tivessem em casa este patrimônio de afeto e sabedoria e que nunca, sob nenhum pretexto, poderia ser desperdiçado.
Quem já deu aula algum dia percebe quando a emoção entrou no recinto. E não é só pelo olho que brilha, mas pelo gesto coletivo de mudar de posição na cadeira, como se o peso do anunciado exigisse uma base de apoio mais sólida.
O tempo passou e invadimos, sem perceber, o horário da aula seguinte. Por mim, teria seguido adiante, tentando aplacar a saudade dos velhos amados que marcaram a minha vida e fizeram com que, à medida que eles iam ficando pelo caminho, eu tivesse sempre outro alinhavado para suprir a falta absurda que faz um avô.
O professor Tarantino, responsável pela orfandade mais recente, viveu muito mais do que a média, mas, por ser tão especial, deixou um vazio que lateja cada vez que volto à Academia Nacional de Medicina e divido com seus outros herdeiros afetivos a necessidade de contar suas histórias, como se elas pudessem, pela saudade, produzir o milagre fugaz da ressurreição.
É muito difícil, depois de um convívio tão rico, determinar qual foi a sua maior lição. Mas pode ter sido esta: de repente, em uma tarde de rotina, no meio de uma consulta complicada, seu nome no visor do celular. Um pedido de desculpa, sob o pretexto de uma urgência, porque era impossível não atendê-lo. E se ele estivesse doente?
– Pois não, professor?
– Ah, Camargo, é uma urgência afetiva, e não sei de ninguém melhor do que você para me entender!
– Diga, professor, se eu puder ajudar.
– Como você sabe, apesar dos meus 90 anos, eu ainda leciono no curso de extensão aqui na clínica, e hoje começou uma turma nova. Como já lhe contei, sempre que eu tenho preguiça de preparar a aula, eu pego aquela minha pasta de couro, linda, que comprei na Galeria Lafayette, em Paris, e onde tenho uma coleção invejável de casos interessantes e aproveito para humilhar os meninos. Acontece que hoje ELA estava entre os alunos. Nunca vi olhos mais lindos na minha vida, nem sabia que existiam daquela cor. Eu falando e ela me olhando fixamente. Terminada a aula, eu estava completamente apaixonado, e ela caminhou na minha direção. Foi quando eu pensei: se ela falar comigo, eu morro! E então, ela perguntou: professor, onde o senhor comprou esta pasta? Claro que estou indo para casa destruído na minha autoestima, mas antes queria lhe pedir que ensinasse a estes jovens que amar desesperadamente não é privilégio deles. Nunca foi. Desculpe a interrupção, já estou me sentindo melhor, talvez nem precise morrer!
E desligou.
Finda a história, anunciei que a aula tinha terminado, mas, por um tempo, ninguém se mexeu. Algumas emoções, as que ficam, têm metabolismo mais lento.