As relações humanas devem ter um componente de afeto, ou pelo menos se espera que tenham. Claro que a interpelação de um agente penitenciário não pode se equiparar à abordagem de uma assistente social, mas abstraídas as circunstâncias extremadas, as interações de pessoas civilizadas precisam ser ungidas de algum grau de empatia.
Em algumas situações, e a relação médico/paciente é o modelo de exigência neste quesito, há necessidade premente de solenidade. Não se pode esperar prosperidade afetiva de uma relação que foi banalizada no primeiro contato pelo atropelo de uma das partes.
Tenho insistido com isso nas conversas com estudantes e residentes: preparem-se para essa aproximação com o reconhecimento que, na ponta mais vulnerável da conexão, está uma criatura fragilizada pelo sofrimento e com todos os sensores ligados. Por consequência, não pretendam resgatar uma relação que tenha começado mal.
Numa noite dessas, fiz uma conferência sobre A Humanização que Qualifica em um grande colégio e discorri sobre a necessidade que o médico tem de dimensionar com inteligência o conflito de sentimentos que envolve de um lado um profissional cumprindo a sua rotina (e a rotina, como aprendemos, é corrosiva das relações afetivas), e do outro, um paciente assustado com a percepção da sua própria finitude. No final da conferência, fui abordado por dois jovens, na idade da indefinição, aquele tempo que cursa entre o fim da puberdade e a vida pra valer. Havia naquelas caras, limpas e ingênuas, a grande curiosidade de quem está consumido pela ânsia de ser muito, e ainda não ter ideia do quê.
Fiquei encantado com a inteligência e a objetividade da dupla e saí com a certeza de que, quando se decidirem, não importa o que for, serão.
Dias depois, recebi um e-mail da mãe de um deles relatando o impacto que a conferência causara no filho, e contando uma história reveladora: ele aprendera instintivamente a importância da solenidade nas relações humanas, sem que ninguém lhe ensinasse. Com três anos e sete meses, sua pediatra lhe solicitara uma ecografia abdominal. Estava ele deitado, com a barriga exposta, na semiescuridão da sala de exame, à espera do médico, e vigiado à distância pela mãe. De repente, entra o doutor, de olho fixo no monitor e, sem dizer palavra, coloca o gel sobre a pele do abdome e começa o exame. Passado um minuto, ele resolveu participar do evento, porque afinal era o dono não só da barriga, mas também das porções que estavam acima e abaixo da área do exame: "Olá, eu sou o Artur!" E então, por iniciativa de uma criança desconfortada com a solidão, a indispensável interação humana, finalmente, entrou em marcha.
Agora, que já incluí o Artur no rol das minhas histórias, fiquei com vontade de requisitá-lo para uma monitoria na faculdade de Medicina.
Os intuitivos, como se sabe, são os melhores didatas.