Ódio é uma emoção duplamente negativa. Quando se expressa, faz mal contra quem se dirige, enquanto envenena aquele que o sente.
Na cadeia, tratei de uma moça que vou chamar de Maria, irmã mais velha de uma menina de 15 anos estuprada e esfaqueada na região genital pelo segurança de uma construção, que fugiu depois do crime. Maria ficou tão revoltada, que largou do namorado, dos amigos e abandonou o emprego de secretária, para dedicar-se em tempo integral à caça do estuprador.
De manhã, saía da casa dos pais como se fosse para o trabalho, e passava o dia pela cidade atrás de qualquer pista que pudesse levá-la a ele. A ideia de matá-lo tomou conta de sua vida de tal forma que nada mais a interessava, nem o convívio com os pais e os sobrinhos de quem era tão próxima. Chegou a dormir na porta de um armazém, à espreita do criminoso.
Finalmente, encontrou-o no café da manhã numa padaria. Seduziu-o com um sorriso. Marcaram encontro para o fim da tarde.
Chegamos ao disparate de politizar a indicação de um medicamento ineficaz no tratamento da doença.
Depois de três cervejas, ela o convidou para o apartamento. Ao atravessarem uma área despovoada, tirou o revólver da mochila, obrigou-o a ajoelhar-se, mostrou-lhe a fotografia da irmã e deu o primeiro tiro, deliberadamente contra o abdômen, de modo a apreciar a submissão e o desespero nos olhos do infeliz. Prolongou quanto pode a agonia do homem suplicante. O tiro de misericórdia veio com um quê de frustração, por dar fim ao sofrimento do desafeto.
Foi condenada a 12 anos. Estava presa havia quatro, quando a conheci. Apesar de reconhecer os revezes da perda de um bom emprego e do convívio com a família, confessava não estar arrependida: “Se ele reencarnasse, eu faria tudo de novo”.
Odiar é doença contagiosa. Você, caríssima leitora, provavelmente sentiu ódio desse homem capaz de estuprar e esfaquear os genitais de uma criança de 15 anos. Fosse você a juíza do caso, talvez não tivesse aplicado pena tão severa ou, quem sabe, considerado a absolvição a sentença mais justa.
A depender das condições, o ódio adquire características de epidemia que se dissemina pela vizinhança, pela cidade, por um país e até por um concerto de nações. Pode ser dirigido contra uma única pessoa, contra um grupo, raça, etnia, os habitantes de um país inteiro ou de uma região do planeta.
Assim, os nazistas convenceram os alemães a aceitar como inevitável o extermínio de judeus, ciganos, crianças nascidas com mal formações e os que manifestavam desacordo com as políticas oficiais.
É uma emoção aglutinadora: os inimigos de quem odeio estão do meu lado, se nos aliarmos teremos mais força para massacrá-lo. O ódio não admite hesitações, interpretações alternativas ou neutralidades, quem não estiver conosco é contra nós. Não existe espaço para empatia nem para o contraditório, entre os odiadores só há certezas.
Talvez a consequência mais nefasta dessa polarização seja o aparecimento do político populista. Seu talento maior está em identificar numa população as mágoas e as frustrações individuais, para transformá-las em ódio, catalisador essencial para unir o povo contra os que serão apontados como responsáveis “por tudo o que está aí”.
O populista necessita da existência de inimigos, como a abelha da flor. Sejam eles imaginários ou personificados. É a lógica do ódio que assegura a submissão dócil dos liderados, esteio da sobrevivência do líder.
O presidente atual soube entender a insatisfação popular e desenterrou o cadáver do comunismo, para interpretar o papel de inimigo do povo. À menor crítica, o cidadão é tachado de comunista e execrado nas redes sociais.
A chegada da pandemia colocou mais lenha nessa fogueira, já que ofereceu a oportunidade de criar outro inimigo: a ciência. Isolamento social, máscaras, testagem em massa, tudo tem sido contestado com afronta pelo próprio presidente e seus seguidores incondicionais. Medidas de saúde pública adotadas no mundo inteiro, passaram a ser consideradas ações propostas por adversários empenhados em destruir a economia, subverter a ordem e matar os brasileiros de fome.
Chegamos ao disparate de politizar a indicação de um medicamento ineficaz no tratamento da doença: quem segue os caprichos do presidente tem que ser favorável à prescrição de cloroquina, ainda que seja tão ignorante em medicina quanto ele.