Perdi a conta de quantas viagens fiz ao Rio Negro; mais de cem talvez. Há 20 anos, escrevi: se me fosse dado o privilégio da derradeira viagem, iria ao Rio Negro mais uma vez.
Mês passado, voltei ao Alto Rio Negro para gravar um documentário em São Gabriel da Cachoeira, a última das cidades na direção da Colômbia e a Venezuela.
São Gabriel já existia como aldeia indígena, quando os primeiros invasores brancos chegaram à região. Hoje, com cerca de 40 mil habitantes espalhados pelo município, metade dos quais no espaço urbano, é a segunda maior cidade do Rio Negro – perde apenas para Manaus, situada a 1.100 quilômetros.
A paisagem é de tirar o fôlego. Já passei horas encantado pela visão da serra do Curicuriari, ao longe, e das águas que correm ruidosas formando rodamoinhos entre as pedras, em oposição ao comportamento plácido que exibem rio abaixo, quando o vento as deixa em paz.
De costas para o rio, você verá a torre branca de bordas azuis de uma das igrejinhas mais singelas do Brasil, ao lado do colégio que os padres salesianos construíram no início do século passado, como parte do sonho de atrair, evangelizar, alfabetizar e convencer os indígenas a abandonar a língua nativa e os costumes que os religiosos consideravam pagãos.
A cidade é o centro político e administrativo da Cabeça do Cachorro (área maior do que Portugal), para onde convergem os indígenas das aldeias às margens do Negro e de seus afluentes que nascem nos países vizinhos. Mais de 80% dos habitantes são indígenas pertencentes a 23 etnias, que emigraram de povoados distantes. A diversidade de idiomas e tradições culturais dos povos do Alto Rio Negro é tão complexa quanto à das florestas habitadas por eles.
Tukanos, baniuas, coripacos, barés, hupdas, desanos, tuyukas, arapaços, yanomamis, pira-tapuias, wananas e as mulheres e homens das demais etnias circulam de sandália havaiana e camisetas que não poupam estampas extravagantes, sob o sol inclemente que transforma a cidade num crematório, às duas da tarde.
O comércio é animado por carros de som, as lojas exibem roupas coloridas, tênis, redes, óculos escuros, material de construção, eletrodomésticos e móveis industrializados. Carros particulares, utilitários, táxis cansados de rodar e motos se movimentam sem engarrafamentos.
A cidade é mais multicultural do que São Paulo ou Rio de Janeiro. Na feira, no comércio e pelas ruas o transeunte ouve as línguas das diversas etnias, o português falado com sotaques variados e o portunhol dos que vieram dos povoados fronteiriços.
As estradas que levam a São Gabriel são líquidas. Os viajantes que partem com as canoas dos povoados rio acima, costumam levar vários dias para chegar à cidade. Com o litro de gasolina a R$ 5, é comum gastar com combustível mais do que o salário de aposentado ou do que lhes é pago pelo bolsa família, obstáculo que os obriga a viajar para receber o pagamento a cada três meses, prazo máximo que o governo lhes dá antes de recolher o dinheiro.
Os militares estão por toda parte; são elogiados e respeitados pela população. Não fossem o uniforme e a presença de alguns brancos e negros, nada os diferenciaria dos habitantes locais. Entrar para o Exército é aspiração generalizada dos jovens indígenas do Alto Rio Negro, garantia de salário mensal e de uma carreira. Infelizmente, o nível de escolaridade e as distâncias amazônicas impedem o acesso às academias militares e às posições hierárquicas superiores.
O comando militar da região está a cargo da Segunda Brigada de Infantaria de Selva, chefiada pelo general Danilo Alencar, homem que se emociona ao falar da alta qualidade do soldado indígena. Sob sua responsabilidade ficam o único hospital do SUS da região e os Pelotões de Fronteira.
O trabalho dos soldados nas fronteiras é solitário. Lá, eles são a única presença do Estado. Cada pelotão é chefiado por um tenente com menos de 30 anos que exerce a função de prefeito, juiz de paz, delegado, assistente social, gestor de atenção médico-odontológica, administrador do programa de inclusão digital e o que mais for necessário assumir nas comunidades carentes das imediações, esquecidas pelas autoridades municipais, estaduais e federais.
Dada a ausência total do Estado nos extremos da Cabeça do Cachorro, tenho convicção de que, se não fosse o Exército brasileiro, já teríamos perdido aquela parte do país.