Foi uma das decisões mais difíceis da minha vida. De um lado, Rio de Janeiro, temperatura amena, noite chegando, aquele sotaque sorridente ao fundo em todos os lugares e gente do mundo inteiro brotando numa metrópole que já nasceu cosmopolita. De outro, o trabalho. Os rigores do dever.
A disciplina espartana que se exige de todo bom repórter no campo de batalha. Ele tem de estar pronto para a chegada da notícia, e isso inclui certas renúncias. Como aquela, em um entardecer durante os Jogos Olímpicos de 2016.
— E aí, biltre: vamos tomar um chope?
Era o David Coimbra, a quem só não chamava de segundo pai por que a diferença de idade impedia. Um irmão mais velho, conselheiro de todas as decisões profissionais que tomei.
O destino nunca permitira, por várias razões, que estivéssemos juntos numa grande cobertura, dessas de ficar muito tempo fora. A Rio 2016 significava, para mim, naquele instante, o emblema de uma amizade iniciada há 26 anos entre dois bravos repórteres que comeram muita carne de pescoço na profissão até chegar naquele banquete, o maior evento do planeta.
Quando o celular tocou naquela segunda-feira não havia como saber que, dois anos depois, tomaríamos café em São Petersburgo e visitaríamos o bunker de Stalin, o ditador, em Samara, entre um e outro jogo da Seleção na Copa da Rússia. Ele tinha vencido o câncer, após um longo e inovador tratamento em Boston.
Embora eu estivesse errado naquele momento, pois o David viveria muito tempo ainda, veio a dúvida. Sim, sou meio paranoico e um tanto dramático, às vezes. E se aquele nosso chope fosse o último, um chope cremoso como são os chopes cariocas?
— Não dá, meu. não dá. Tenho de ir para o Engenhão daqui a pouco...
O David assinava uma coluna autoral, sempre a mais lida e comentada. Era o dono das próprias pautas e horários. Sua missão era achar um tema diferente ou abordar o assunto do dia com olhar diferente.
Para o David, uma barbada. Ele sempre conseguia. E rápido. Terminava o seu dia cedo.
Na Argentina, ninguém pede para o Messi marcar ou chegar no horário. Ele tem de estar solto e bem para brilhar na hora certa.
O David era o nosso Messi. Só que eu tinha pautas, escalas, tarefas mundanas a cumprir. Eu era o Mac Allister, um De Paul sem tatuagem. O atletismo era comigo na cobertura.
— O que tem lá no Engenhão a essa hora da noite? — perguntou o David, espantado.
— Final do salto com vara. Tem um brasileiro — respondi com o tom de voz indeciso, próprio dos covardes.
— Mas desde quando um brasileiro vai ganhar medalha de ouro no salto com vara! Francamente. Ele vai perder e virar notinha no jornal. Não precisa tu ir. Faz pela TV. E aí, vamos?
O David era assim. Difícil dizer não. Nos arrastava para conversas de bar, onde brotavam boas risadas. Morri de medo de culpar a mim mesmo no futuro.
Eu teria nova chance, com tudo o que a gente ouve sobre câncer, mesmo ele estando bem, como de fato estava? Ele nos deixou apenas seis anos depois daquela segunda-feira. A tendência era ele estar certo sobre o salto com vara, e aí eu trocaria um chope cremoso no Rio por um rodapé de jornal. Mas eu era o Mac Allister. Nunca se esqueça quem você é.
— Tenho de ir. Tá na escala. Vai que o cara ganha. Aí o pessoal da Redação me liga pedindo duas páginas, os caras ouvem a gritaria de bar com samba ao fundo e eu tô ferrado...
Recusei o chope e fui para o Engenhão. Thiago Braz, 23 anos, contrariando todas as expectativas, superou Renaud Lavillenie, cujo bi olímpico era favas contadas.
O sarrafo foi subindo. Os adversários caíram um a um, até sobrarem só o brasileiro e o francês voador, que era um exibido.
O público passou a se comportar como no futebol. Brasil, meus amigos. Nada daquelas palminhas fofas antes do salto. Tome vaia e rimas nada republicanos antes do francês saltar. Só que o desgranido, mesmo na pressão, bateu o recorde olímpico e calou o Engenhão.
O telão mostrou o seu risinho de vitória, julgando-se o Napoleão encarnado. Que ódio. Então, o milagre.
Em vez de subir um centímetro o sarrafo, como é o normal, o brasileiro pediu 6m03cm. Uma insanidade: ele jamais tinha passado dos 6m na vida.
Um silêncio de morte se ouviu durante aquela corrida, seguida de uma explosão de gol incrível quando o brasileiro voou, contorceu-se todo lá no alto e aterrissou sem que o sarrafo se movesse. O francês empalideceu.
Há alguns minutos, tinha batido o recorde olímpico, mas agora restava uma única tentativa para virar o jogo. Acusou o golpe. Falhou, miseravelmente. Culpou a vaia da torcida.
Escrevi duas páginas, uma delas comparando a rivalidade deles com a de Prost e Senna, pois descobri na zona mista que o francês morria de ciúmes do jovem brasileiro, um talento emergente.
Liguei para o David ainda do estádio, já rindo:
— O brasileiro ganhou! Ouro! Viste só? Eu tinha razão! O jornal vai dar duas páginas.
— Não me diz! Rapaz... Tu tinha razão. Fizeste bem em ir! Mas vem cá: será que ainda dá tempo daquele chope?