"Todo mundo pode perder o controle. Até você." O alerta vem sendo usado pelo canal a cabo HBO para promover a exibição do filme argentino Relatos Selvagens na TV. Se você ainda não assistiu, não perca tempo: é diversão garantida. Se já viu, sabe que o filme mostra pessoas comuns em situações extremas (ou nem tanto) reagindo de forma visceral e intempestiva aos acontecimentos. Como feras acuadas – daí o "selvagens" do título.
Não sei com que dose de humor negro a HBO escolheu divulgar esse slogan justo agora - se por inocente coincidência ou por troça proposital com o ambiente especialmente selvagem da vida cotidiana no país – mas a carapuça serviu. A esta altura de março de 2016, podemos cravar, sem medo de exagero ou miopia histórica: nunca fomos tão selvagens. Não só porque a tensão é inédita em profundidade e extensão no tempo, mas porque as redes sociais têm servido como álcool nessa fogueira cotidiana - espalhando certezas, rancores e dando a cada um a falsa impressão de que a sua timeline é um retrato do Brasil.
A interrupção do espetáculo Todos os Musicais de Chico Buarque em 90 Minutos, em Belo Horizonte, depois que o ator Claudio Botelho incluiu um improviso no meio da peça com críticas chulas a Dilma e Lula, é a terrível ilustração da selvageria que tomou conta dos debates públicos e privados nos últimos dias. Do lado do ator, a frivolidade e a agressividade dos comentários demonstram uma notável imaturidade política. Do lado do público que puxou o coro de "não vai ter golpe", precipitando a interrupção do espetáculo, percebe-se a incapacidade para tolerar pacificamente o contraditório. A comparação com a repressão ao espetáculo Roda Viva em 1968, no entanto, é estapafúrdia. Uma coisa é ver um teatro invadido por cem membros do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) determinados a agredir artistas e depredar cenários. Outra bem diferente é uma reação espontânea de parte de uma plateia ao comentário infeliz de um ator em cena. Se há algo em comum nos dois episódios é a evidente falência do diálogo – mas o risco de que esse tipo de animosidade redunde em violência é cada vez mais real.
Há no ar, me parece, uma gravidade heroica, como se cada gesto público fosse definir não apenas o rumo da história do país, mas a própria história de cada um. Vi muitas pessoas comentando que querem estar do lado certo da história quando, daqui a alguns anos, olharem para 2016 e para os desdobramentos dos episódios que estão se desenrolando agora. Nada contra o idealismo heroico, mas antes de vestir o uniforme e partir para a guerra seria bom se fortalecêssemos todos os mecanismos que a própria democracia oferece para mediar os conflitos. Um bom exercício, para começar, seria defender, como se fosse uma causa pessoal, o direito que todos os adversários têm de se manifestar. Você fica enojado, irritado, abespinhado? Respire e conte até 10. Todo mundo pode tentar se controlar. Até você.