Não me recordo do nome de um filme, nem vou procurar no Google para manter a minha impressão inicial. Eu assisti na faculdade, é de autoria do alemão Werner Herzog. Um aborígene australiano relatava o fim de seu povo num tribunal, mas ninguém entendia o que ele estava dizendo. Nem nós, espectadores. Não havia legenda. Não havia tradução. Era o único sobrevivente de uma língua, o único falante de um idioma sem correspondência em qualquer dicionário. Apenas ele poderia entender a si mesmo, estava à beira da extinção.
Suas lágrimas, seus gritos, sua dor não encontravam eco nas palavras dos outros.
Essa solidão assassinada me veio à tona ao ver crianças Yanomami adoecidas em Roraima, deitadas na rede com todas as costelas aparecendo, mais carniças do que crianças. Os ossos se mostravam em relevo, com a pele esticada ao máximo pela fome. Os sinais de verminose eram evidentes, como abdome inchado. Vermes se expeliam pela boca.
Constata-se a degradação contínua e acelerada no atendimento de saúde para essa população, a partir da suspensão de envio de medicamentos.
Doenças simples e rapidamente contornáveis passam a evoluir para quadros complexos e irreversíveis. Uma gripe logo se torna pneumonia. A malária é galopante em três comunidades: Xaruna, Heweteu I e Heweteu II.
Cerca de 10.193 menores estão desassistidos. Segundo o Ministério Público Federal (MPF), 52% das crianças Yanomami estavam desnutridas no fim de 2022, índice que em comunidades de difícil acesso chegava a 80%.
O abandono dos postos de saúde próximos às pistas de pouso, utilizados pelas equipes do Dsei-Y (Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami), agrava o desamparo. Ninguém quer atender em zona de guerra deflagrada pela exploração ilegal da mata.
Vigora um projeto em andamento para o desaparecimento dos povos indígenas. Eles ficam isolados dos seus habitats devido ao garimpo e desmatamento, num conflito permanente com invasores. Não têm como caçar ou se alimentar dos recursos naturais. Vêm definhando em segredo de Estado.
De acordo com o Ministério dos Povos Indígenas, em dados referentes a 2022, morreram 99 meninos e meninas do povo Yanomami, na faixa de um a quatro anos. As causas da morte são, na maioria dos casos, à desnutrição, pneumonia e diarreia.
A Hutukara Associação Yanomani, entidade de defesa criada pelos próprios indígenas, enviou 21 pedidos de socorro aos órgãos públicos sobre os “conflitos sangrentos” ao longo dos últimos dois anos. Nada foi feito. Nada foi remediado.
Talvez seja tarde para resolver uma crise sanitária absolutamente planejada para a dizimação das nossas etnias nativas. O Ministério da Saúde decretou estado de emergência na sexta-feira (20).
A última vez em que testemunhamos tamanha brutalidade famélica em nossa memória coletiva se deu com os retirantes nordestinos nos períodos de seca do século passado, representada na arte por Candido Portinari e pelos versos de Morte e Vida Severina, do pernambucano João Cabral de Melo Neto.
Poderíamos trocar o “Severino” de Cabral por “Yanomami” e teríamos a reprise da tragédia.
“E se somos Yanomami
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte Yanomami
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte Yanomami
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).”
Só que isso não é uma ficção a que assisti na universidade, é a própria realidade sangrando agora perante os nossos olhos. E tem nome: genocídio!