No alto da cidade de Presidente Lucena, a confeiteira aposentada Marisa Führ, 54 anos, arranca um pé de alface da horta na frente de casa enquanto é questionada pela reportagem quantas vezes ao longo da vida já procurou a polícia. A resposta vem de supetão:
– Nunca precisei. Aqui em casa nunca ninguém precisou.
Residente da principal avenida da cidade de 2,9 mil habitantes, a confeiteira mora a 70 quilômetros de Porto Alegre e é categórica ao dizer que nunca pegou o telefone para ligar para o 190:
– Não tem por quê.
No meio do caminho entre a Região Metropolitana e a Serra, dois dos principais bolsões de criminalidade do Rio Grande do Sul, um município do Vale do Sinos é blindado da violência urbana.
Dos 29 anos de emancipação, Presidente Lucena não registra assassinato há pelo menos 20. E mesmo delitos simples, como furto, são raros. Em todo 2020, foram sete casos. Na Delegacia de Polícia de Ivoti, que também atende o município, o principal registro em um ano e meio é de perda de documentos (48), seguido por acidente com danos materiais (27) e estelionato (18).
À frente do comando da BM no município, o sargento Ângelo de Oliveira Soares conta que o último assalto que ele recorda foi há três anos. Na cidade, a polícia é chamada para resolver principalmente picuinha de vizinhos: denúncias de som alto, perturbação e discussão em jogo de futebol. Outras vezes, para ocorrência de trânsito ou manifestar preocupação com a alta velocidade que os veículos passam na Avenida Presidente Lucena, via que de um lado conecta a cidade à BR-116 e de outro, à vizinha Ivoti.
Dona Marisa só ergueu o portão na frente de casa para os filhos não correrem para o asfalto. A chegada de qualquer visita é anunciada pelo cachorro e ao desconfiar de movimentação suspeita, Marisa recorre ao Vigilantes, nome dado ao grupo de WhatsApp dos moradores da cidade.
– Carro estranho, gente rondando ou vendedor suspeito, a gente põe no grupo. Tenho medo que mais cedo ou mais tarde o crime venha para cá.
A conduta preventiva dá resultado: dificilmente um sujeito de fora circula pela cidade sem ser percebido por algum morador. Os mais desinibidos perguntam de cara de onde vem o forasteiro. A maioria mantém contato direto com a polícia. Na descrição do sargento Ângelo, a relação da polícia com os moradores é quase familiar. O efetivo mora na cidade, as pessoas conhecem o policial pelo nome e o reconhecem também à paisana:
– Aqui o policial não é só mais um. O soldado é chamado pelo nome, ele já se sente diferente por isso.
Proprietária de uma cachaçaria na cidade, Juliana Enzweiler, 42 anos, recorda do primeiro e único ato violento que enfrentou na vida: um assalto a mão armada na loja da família há 20 anos, pouco tempo depois da inauguração, quando os pais foram amarrados por criminosos. O episódio causou depressão na mãe, mas a família persistiu no negócio. Hoje, o perfil da cidade permite que clientes circulem pelos barris carvalho e acompanhem a produção artesanal da cachaça que é tradição na família desde 1885, enquanto outros visitam a loja no mesmo prédio.
– Nosso diferencial é mostrar o processo. Tenho essa segurança de ter um cliente vendo os barris e outro na loja, esperando, até que eu termine de atender. Num grande centro isso não seria possível. Estou aqui, mas meus ouvidos estão lá embaixo – brinca Juliana em meio a decantadores de cachaça.
Qualquer morador de Presidente Lucena reconhece os privilégios da cidade e não faz esforço para enumerá-los.
– Moro no meio de duas regiões violentas, mas que é o melhor lugar do mundo. Estou a uma hora de carro Porto Alegre, onde tem medicina de primeiro mundo, e a duas horas de Tramandaí – exemplifica o dono de mercado e lancheria, Ricardo Exner, 56 anos.
O silêncio natural de Presidente Lucena fez Exner, um nativo do município, detestar barulho e som alto. A cidade, que durante o dia só tem a tranquilidade timidamente alterada pelos carros que cruzam pela avenida principal, cala por completo a partir das 18h. É a hora que toca o sino da igreja.
Questionado sobre o que tira do sério o morador de Presidente Lucena, Exner pensa, fica em silêncio, tenta puxar algo da memória até responder:
– Acho que nada.