Alice Beatriz Rodrigues não chegou a dar os primeiros passos e nem a dizer palavras completas. Só houve tempo para aprender a engatinhar e balbuciar poucas sílabas. Com um ano de idade, foi executada com um tiro de fuzil no peito. Morreu junto dos pais na zona norte de Porto Alegre, em 23 de setembro de 2018, também alvejados. O carro da família foi perseguido e varado a tiros na saída da festa de aniversário da bebê. Um ano depois, seis réus respondem pela execução, mas um deles continua foragido.
Às 21h30min, Sabrine Panes Rodrigues, 24 anos, e Douglas Araújo da Silva, 29, deixaram o salão no bairro Jardim Leopoldina com a filha. Guardaram os presentes que Alice havia ganhado na comemoração e partiram. Mãe e filha estavam na carona. A menina usava vestido, sapatinho e laço na cor vermelha, em alusão a Minnie, personagem infantil tema da festa.
Tão logo arrancou, o Ka passou a ser perseguido por dois carros: uma EcoSport, que depois seria encontrada incendiada, e um Ka preto. Silva tentou escapar e colidiu o automóvel contra árvores. Foi alvejado mais de 50 vezes, inclusive por disparos de fuzil calibre .556 e pistolas 9mm. A criança foi encontrada sem vida ao lado dos pais na Rua Cacilda Yaconis Becker, no bairro Rubem Berta.
Avô paterno de Alice, um vendedor, que prefere não ser identificado por receio de represálias, diz que a família tem buscado se reerguer. A última vez que viu a neta foi na saída do aniversário. Deixou o local minutos antes da família ser executada. Sabrine estava grávida de quatro meses, de outra menina.
— Estamos desorientados. Não tem nada que preencha esse espaço. É um vazio muito grande. Perdi minhas duas netinhas. A outra já tinha nome, seria Aila, e tinha as roupinhas. A gente tenta tocar a vida, mas é difícil. Sinto a falta da minha bebê, do meu filho. É muito doloroso. Não tem um dia que não pense nisso.
Os seis réus
A equipe da 3ª Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) identificou cinco suspeitos de estarem nos dois veículos. São eles: Michel Renan Bragé de Oliveira, o Bragé da Bonja, 21 anos, Maycon Azevedo da Silva, 23 anos, Nícolas Teixeira da Rosa, 23 anos, o Ovelha, Anderson Boeira Barreto, 27 anos, e Leandro Martins Machado, 29 anos, o Mandy, o único foragido.
O último a ser preso foi Barreto, que segundo o delegado Cassiano Cabral, da 3ª DHPP, foi flagrado no bairro Mario Quintana, em 14 de setembro, com drogas, arma e munição, e encaminhado ao Presídio Central. Em 1º de janeiro, Bragé da Bonja havia sido capturado pela Polícia Civil em Garopaba. O suspeito foi preso na beira da praia catarinense, onde policiais descobriram que ele passaria a virada de ano. Bragé é apontado como um dos responsáveis pelos disparos. Segundo a polícia, ele estaria com o fuzil.
Para a Polícia Civil, a ordem para as execuções foi dada por Émerson Alex dos Santos Vieira, o Romarinho, 29 anos, de dentro do sistema prisional. Não foi possível identificar quem era o sexto atirador. A investigação concluiu que Silva era o alvo dos criminosos. Ele estava foragido do sistema prisional e tinha envolvimento com tráfico de drogas, conforme a polícia.
A denúncia apresentada pelo Ministério Público em 18 de fevereiro foi aceita pela Justiça e os seis se tornaram réus por triplo homicídio qualificado e associação criminosa. Conforme a Polícia Civil, em depoimento, os quatro primeiros presos se mantiveram em silêncio sobre as mortes. Eles ainda não foram ouvidos no processo. Barreto, o último a ser preso, só será ouvido sobre o caso na esfera judicial. A data para a primeira audiência para ouvir testemunhas deve ser agendada após a Justiça receber resposta à acusação por parte da defesa de Bragé.
Cogitaram invadir festa
Ao longo das investigações, a polícia descobriu que os atiradores cogitaram invadir a festa e que no momento em que atacaram o veículo sabiam que havia uma criança dentro dele. Eles monitoraram o local para preparar a emboscada. Recuaram da ideia de ingressar no salão diante da possibilidade de haver revide e do salão estar lotado.
Os áudios de WhatsApp trocados pelos bandidos antes e depois do crime foram obtidos após a prisão de um dos suspeitos. No celular, havia uma série de conversas e imagens que detalhavam a ação. "Tem criança, né meu. Para (o carro) na frente dele", teria avisado um dos participantes do crime.
Para a polícia, essa conversa teria ocorrido pouco antes do ataque:
Romarinho: "Entrar na festa? Não tem como, tá louco? Um bando de crianças... vai ter gente atirando ali, não vai estar só ele. Vai ter um cupincha também armado. Lá na festa, não tem como."
Bragé: "Pois eles vão estar no meio de um bando de crianças. Um tiro de bico (fuzil) atravessa duas ou três crianças. Aí vai cair na consequência da gente. O portão tá aberto. Tem umas 20 pessoas dentro do salão, meu."
Após o crime, Bragé da Bonja teria comunicado ao grupo que também haviam sido mortos a mulher e a filha. No áudio, ele alega que Silva "atirou primeiro".
"Bah, a criança morreu ali mesmo. A mulher também. Morreu toda a família. Ô, cupincha. Na real, isso acontece. Nós não chegamos de rosto queimando. Nós não matamos ele antes. Ele que deu tiro primeiro", teria justificado.
O caso
A emboscada
A comemoração do aniversário da criança foi realizada no bairro Jardim Leopoldina. A família foi atacada tão logo deixou o salão da festa. Silva dirigia um Ka prata. Sabrine e a filha estavam na carona. O veículo passou a ser perseguido por outro Ka e por uma Ecosport. Silva perdeu o controle do carro e bateu em árvores na Rua Cacilda Yaconis Becker.
O ataque
Na sequência, criminosos armados e fardados como policiais civis desembarcaram. Foram mais de 50 disparos com pistolas e fuzil. Dentro do salão onde tinha acontecido o aniversário, convidados ouviram os tiros e correram para saber o que havia ocorrido. Alice e os pais foram encontrados mortos dentro do veículo.
O motivo
A investigação conduzida pelo delegado Cassiano Cabral, da 3ª DHPP, concluiu que o alvo dos atiradores era o pai da criança. O motivo do triplo assassinato seria uma desavença entre quadrilhas que disputam pontos de tráfico de drogas. A intenção dos autores seria sequestrar Silva para torturá-lo e obrigá-lo a revelar informações sobre um grupo rival. Ele já havia sido condenado a 10 anos de prisão por tráfico de drogas. Após romper tornozeleira eletrônica, passou a ser considerado foragido.
Os réus
Para o Ministério Público, Romarinho planejou o crime, Bragé da Bonja, Maycon e Anderson atiraram, Ovelha conduzia um dos veículos e Leandro monitorou as vítimas. Eles respondem por três homicídios, qualificados por motivo torpe, por resultar em perigo comum e pela emboscada. No caso da criança, há agravante pelo fato do crime ser contra menor de 14 anos. Eles ainda são acusados de associação criminosa.