É só olhar para os lados em uma praça de alimentação – ou até mesmo na rua, ou, pior ainda, em escadas – para observar cabeças baixas, fitando intensamente uma tela brilhante. Em alguns casos, há várias pessoas reunidas, todas concentradas na mesma ação. Quando se estabelecem conversas face a face, simultaneamente alguns rolam os dedos pelo feed das redes sociais ou aproveitam para também responder mensagens. Não raro, a conversa chega a ser interrompida, já que a outra pessoa não está prestando atenção no que você diz.
Vivemos em uma sociedade hiperconectada – e não há como (nem um porquê) se desvencilhar disso. A tecnologia foi criada para ser uma grande aliada do ser humano. Porém, é preciso moderação. As telas não devem ser suprimidas, mas é importante tentar alcançar um ponto de equilíbrio e uso consciente.
É necessário estar atento para evitar prejuízos, como impactos relacionados às conexões emocionais, à disponibilidade de tempo e à saúde. Quem passa o dia no celular também estabelece esse exemplo para os filhos seguirem, conforme os especialistas consultados por Zero Hora. Por esses motivos, é importante refletir sobre essas ações. Há maneiras de melhorar a relação com a tecnologia e, consequentemente, as relações interpessoais.
— Temos de pensar como sociedade se ainda estamos falando de redes sociais ou estamos falando de outros aplicativos que estão cada vez menos sociais, proporcionando um uso cada vez mais solitário e nos mantendo mais afastados — aponta Daniel Spritzer, psiquiatra de crianças e adolescentes e coordenador do Grupo de Estudos sobre Adições Tecnológicas (Geat).
Na casa da família Avila, em Porto Alegre, a tecnologia é aliada para a organização. Vanessa, 48 anos, já não consegue imaginar a rotina sem o celular, mas a família busca manter uma relação de equilíbrio. Não há, por exemplo, necessidade de proibição – nem mesmo em castigos, já que os filhos Arthur, 13, e Carolina, 18, não fazem um uso problemático. A única regra é que, à mesa, o celular não é permitido, para que todos possam conversar. Além disso, a senha é a mesma em todos os telefones.
— Cortar não é o caminho, a tecnologia veio ajudar. Cortar das crianças é impossível e vai contra o que a gente acredita — diz a pedagoga.
Carolina dedica seu tempo a estudar para o vestibular. À noite, ela, Vanessa e André, 50, costumam assistir ao jornal juntos, e Arthur, que utiliza pouco o Instagram, joga bola e videogame, estuda e conversa com a família. Além das tarefas domésticas, Vanessa assiste a programas e mexe um pouco nas redes sociais – mais do que o marido, que utiliza o tablet ou celular para ler. Os usos, porém, não atrapalham, pois a família sabe colocar o limite necessário, na opinião da mãe – os pais não mexem no celular na cama, por exemplo.
— É muito tranquilo. Tem um equilíbrio e é muito saudável, não compete — descreve.
Ações versus orientações
A discussão sobre os limites do uso da tecnologia não é nova. O Ministério da Educação está preparando, inclusive, um projeto de lei que proíbe o uso de celulares dentro de salas de aulas de escolas públicas e privadas.
Os smartphones acabam gerando rupturas nas relações interpessoais no mundo real, gerando prejuízos no estabelecimento de uma conexão emocional e na comunicação o que é prejudicial para o desenvolvimento de crianças, explica a psicóloga Débora Becker, que estuda o uso de telas por pais e crianças, a influência do uso nas interações interpessoais e o uso problemático de smartphones. Ela observa, porém, que o celular tem pontos positivos, como o acesso a informações e a entretenimento, não sendo a fonte do problema – e sim, o seu uso.
As ações dos pais, mais do que as próprias orientações, servem como modelos para as crianças, que acabam desenvolvendo os mesmos padrões de uso da tela. Além disso, a distração com a tela pode até colocar a criança em situações de risco.
Vários estudos têm apontado que pais que fazem um uso mais problemático e mais excessivo de telas têm filhos que também acabam apresentando problemas com relação a esse uso. Então, é muito importante que os pais deem o exemplo, porque não basta cobrar dos filhos um uso diferenciado e mais reduzido se os pais ali estão o tempo todo conectados também
DÉBORA BECKER
Psicóloga
Os efeitos do uso excessivo são variados, conforme o psiquiatra Daniel Spritzer: impacto negativo no rendimento escolar; isolamento em relação à família e aos amigos; problemas de saúde, como sedentarismo, aumento de peso e erros alimentares; piora da qualidade do sono; problemas relacionados ao trabalho, devido ao cansaço ou à interrupção para acompanhar notificações e redes sociais. Geralmente, a queixa também vem dos cônjuges, de que a pessoa está mais desconectada do relacionamento ou passando tempo demais no trabalho.
É difícil caracterizar o uso excessivo, pois varia de pessoa para pessoa, conforme Débora. Já o uso não saudável, segundo Spritzer, é aquele que coloca a pessoa em risco para um desfecho negativo ou traz algum prejuízo significativo para a vida.
10 dicas para melhorar a relação com o celular
As psicólogas Aline Restano e Débora Becker fazem as seguintes sugestões, mas apontam que não existe regra ou receita que sirva para todas as pessoas:
- Intercalar o tempo de uso de telas com outras atividades sem telas, realizando pausas e preenchendo a rotina
- Não manter o celular por perto durante a noite e tentar evitá-lo cerca de uma hora antes de dormir
- Evitar acessá-lo assim que acordar
- Evitar o uso durante as refeições e nos momentos de lazer
- Separar horários de trabalho, de lazer e de refeição, respeitando momentos de integração com a família ou os amigos, para garantir também maior qualidade na relação com a alimentação
- Em alguns casos, utilizar controle de tempo de tela, para evitar perder a noção do tempo
- Silenciar notificações, caso considere necessário
- Ainda que alguns profissionais tenham de estar conectados praticamente o dia todo, é interessante eleger algum horário do dia para responder ao que não é tão urgente
- Pais devem orientar os pequenos sobre o uso e explicar sobre situações excepcionais nas quais há necessidade
- Manter o celular longe nos chamados momentos sagrados da rotina, que geram prazer, satisfação
Consciência é o primeiro passo para a mudança
Para que ocorra uma relação mais saudável com a tecnologia, é preciso tomar consciência do uso atual, refletindo sobre se realmente é excessivo e se afeta o convívio social e a saúde, conforme os especialistas ouvidos por Zero Hora.
Se por acaso a gente está usando para evitar momentos de tristeza, de vazio, se está nos impossibilitando de ter um contato mais íntimo com pessoas de que a gente gosta, amigos, familiares, se está prejudicando a nossa presença em momentos que a gente está sozinho, na nossa própria companhia, que são sempre oportunidades de revermos nossos planos, projetos, problemas, medos. Se a gente sempre estiver se ocupando com o celular e não estiver dando conta dos nossos próprios pensamentos, isso tende a ser um uso bem prejudicial
ALINE RESTANO
Psicóloga
O psiquiatra Spritzer afirma que o impacto da tecnologia depende de uma série de fatores, incluindo necessidades individuais, idade, conteúdo consumido, entre outros. Assim, é necessário analisar cada pessoa e seus objetivos de vida, avaliando se a tecnologia proporciona uma aproximação ou afastamento. É importante também pensar no contexto de uso: se é mais solitário ou se conecta a pessoa a outras.
Quanto ao tempo de uso, trata-se de uma medida relativa: pode variar se a pessoa trabalha diretamente com tecnologia, por exemplo, ou se a utiliza por um período pré-determinado, mas que deveria ser de qualidade fora das telas. Cada vez mais, porém, as pessoas têm percebido que utilizam por mais tempo do que gostariam, ou não sentem que trouxe benefício, ressalta Spritzer.
Além de refletir sobre os momentos nos quais se busca a tecnologia – como em situações de sobrecarga, para relaxar –, é preciso pensar se isso realmente ajuda e se o uso poderia ser substituído por outra atividade sem telas, o que é recomendado – por exemplo, por uma caminhada ao ar livre. Débora alerta:
— O tempo excessivo diante das telas também acaba impedindo que a gente viva outras coisas do nosso dia a dia, que a gente tire um tempo para poder observar e contemplar a vida acontecendo, e, muitas vezes, a gente não se dá conta disso na correria.
Seis dicas de etiqueta digital
Melhorar a relação com a tecnologia também passa pelo modo de interagir no mundo virtual, que também afeta as pessoas. As psicólogas dão dicas para ajustar a conduta:
- Evite seguir perfis que despertam inveja, competição, mal-estar com a imagem corporal ou com o estilo de vida, ou que tratem de assuntos sensíveis que deixam a pessoa com raiva. Tente privilegiar contas que façam bem e tragam potencial de criatividade
- Deixe para tratar assuntos sérios e importantes pessoalmente
- O mesmo código de conduta das interações no mundo real vale para a internet: respeito, com uso consciente e responsável, sempre pautado pela ética, lembrando que há responsabilidade pelas ações no contexto virtual
- Não divulgar informações falsas
- Cuidado com a exposição nas mídias, principalmente de crianças, evitando expor fotos e vídeos, em respeito a elas e para evitar colocá-las em situações de risco. Pedir, sempre que possível, o consentimento da criança ou jovem
- Ter cautela e pensar antes de publicar. Evitar postagens por impulso, pensar sobre consequências e sentimentos. Avaliar se aquilo realmente é válido e importante, se é respeitoso ou vai ferir alguém, inclusive em comentários. Uma vez publicado na internet, é difícil apagar
Quando se desconectar
Desconectar-se é importante para cuidar da saúde mental e física, defende a psicóloga Débora. Estudos apontam para associações entre uso excessivo de celulares com maiores índices de ansiedade, estresse e depressão. Para diminuir riscos, é importante manter vínculos, com conversas, afeto, profundidade, identificação e compartilhamento de experiências, defende Aline Restano, psicóloga, coautora de Crianças Bem Conectadas, um livro direcionado aos pais.
— Esses momentos que são sempre interrompidos pelas redes sociais tendem a ser menos produtivos, menos íntimos, tendem a sempre cortar a cadeia associativa de contato. Por isso, é importante a gente se desconectar — avalia.
O psiquiatra Spritzer, que é coautor do mesmo livro, ressalta, porém, que nem todas as pessoas necessitam se afastar da tecnologia. Se o uso impacta de maneira negativa outras áreas da vida, a medida passa a ser importante.
A vida existe longe da tela
Encontrar o equilíbrio passa mais por organizar as outras atividades importantes da vida, como dormir, fazer atividade física, ter tempo de convivência e ter algum hobby, assim como trabalhar e estudar, na opinião do psiquiatra Spritzer. Depois, pode-se pensar no restante do tempo como possibilidade de uso da tecnologia, ao invés de focar em uma regra geral. A psicóloga Aline lembra, porém, que não existe equilíbrio constante 100% do tempo. O importante é buscar ter consciência disso e retomar os momentos importantes e um funcionamento que não prejudique tanto as relações.
Os hábitos envolvendo celulares e tablets em lugares públicos também comprometem a sociabilidade. A psicóloga Débora destaca que é fundamental ter a consciência e o cuidado de priorizar o momento de troca face a face ao interagir com outra pessoa, evitando utilizar o celular. Nos momentos em que for necessário utilizá-lo, ela sugere pedir licença e, depois, retornar para a interação.
A chamada “presença ausente” – quando a pessoa está fisicamente presente, mas, por estar envolvida em um outro “mundo”, está emocionalmente ausente – é comum e, muitas vezes, não percebida:
— No contexto das interações interpessoais, dos relacionamentos humanos, a gente precisa dessa presença emocional. Então, eu acho que ter consciência disso também é o primeiro passo, de que, dependendo de como a gente estiver fazendo esse uso, ele pode ser nocivo, pode gerar danos nas interações que são tão preciosas para nós.