Imagine a cena: você precisa parar um trem que trafega em alta velocidade. Qual seria a saída mais razoável? Enviar outra composição no sentido oposto ou disparar uma no mesmo sentido para conseguir controlá-la e imprimir o ritmo desejado? Foi com esse exemplo que o médico e farmacêutico norte-americano Cyrus Maxwell Boger ilustrou um tratamento médico à base de alopatia versus um que usa a homeopatia. Bater de frente com o trem seria o que faz a medicina tradicional, receitando medicamentos que vão em oposição à doença. Já a homeopatia seria a segunda opção, que correria junto à enfermidade na tentativa de modificá-la.
Agora, imagine outra cena: um homem entra em um hospital homeopático, depois de sofrer um acidente de carro. O médico pede à enfermeira que pegue uma peça do carro que o atropelou, dilua-a em água e agite-a repetidamente para colocar três gotas do líquido resultante sob a língua do ferido.
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Apesar de se tratar de uma paródia popular sobre medicina alternativa, essa situação ilustra a base teórica da homeopatia: a de que o semelhante cura o semelhante, princípio que o alemão Samuel Hahnemann identificou em 1796. A proposta consiste em usar como matéria-prima aquilo que está fazendo mal ao indivíduo em doses infinitesimais, ou seja, diluída várias vezes. O objetivo da prática é organizar o corpo tornando-o capaz de promover a autocura:
– Via de regra, o tratamento alopático antagoniza alguma reação química ou via metabólica do organismo. A homeopatia não. Ela estimula as vias metabólicas que controlam a reação inadequada. A alopatia combate a doença, e a homeopatia cura o doente – defende o presidente da Associação Brasileira de Homeopatia e Homotoxicologia, Milton Minoru Takeuti.
Para os homeopatas, o segredo da técnica está na diluição da matéria-prima.
– Os medicamentos são diluídos inúmeras vezes em água ou álcool a fim de potencializar as propriedades latentes da substância – diz a farmacêutica especialista em homeopatia Graciana Neumann.
O processo pelo qual passam as matérias-primas é chamado de dinamização (veja abaixo) e consiste em diluir as substâncias e agitar o frasco. Mas, em muitos casos, a diluição é tanta que, tecnicamente, o medicamento resultante não passa de água.
De acordo com a médica especialista em homeopatia Universina Ramos, que há 30 anos atua na área e é presidente da Câmara Técnica de Homeopatia do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul (Cremers), formulações muito diluídas de fato não têm mais matéria, mas, sim, sua energia, que agiria diretamente na energia vital do paciente.
Pela lógica da homeopatia, quanto menos diluído, mais o medicamento vai agir sobre os sintomas, enquanto diluições maiores atuam sobre o indivíduo como um todo. Ou seja: quanto mais dinamizado, mais potente seria o produto final.
– É mais difícil de aceitar porque, quanto mais diluído e mais energizado por meio de sucessões, menos matéria, mas mais energia tem o medicamento, aumentando seu poder curativo. Não se tem controle sobre essa energia que atua de maneira inversamente proporcional – argumenta Graciana.
Como ocorre a diluição
CH é a escala centesimal do medicamento homeopático. É ela que indica quantas vezes aquela substância foi dinamizada. Se um frasco do remédio indica CH1, significa que a matéria-prima foi diluída cem vezes. Formulações a partir do CH14 não têm mais matéria, só sua energia, de acordo com os homeopatas:
Para a ciência, é placebo
Os cientistas não confiam no conceito de energia vital, e diversas pesquisas já apontaram que o efeito do medicamento homeopático não passa de placebo. Uma das mais recentes, publicada em 2015, foi realizada pelo Conselho Nacional de Saúde e Pesquisa Médica da Austrália, analisou 176 estudos sobre o tema e bateu o martelo dizendo que "não há nenhuma evidência confiável a partir de pesquisas em seres humanos de que a homeopatia foi eficaz para uma gama de condições de saúde".
Os pesquisadores ainda afirmaram que "a homeopatia não deve ser usada para tratar problemas de saúde crônicos, sérios ou que podem se tornar sérios. Pessoas que escolhem homeopatia podem colocar a saúde em risco se rejeitarem tratamentos para os quais há evidências de segurança e eficácia". Os dados analisados não mostraram melhora na saúde dos pacientes além da taxa do efeito placebo.
A pesquisa foi liderada pelo professor da Bond University Paul Glasziou, que ainda escreveu outro texto, posteriormente, afirmando que Samuel Hahnemann, criador da terapia, "ficaria desapontado pelo fracasso coletivo da homeopatia para continuar suas investigações inovadoras".
Também no ano passado, ministros da Inglaterra sinalizaram que podem proibir a prescrição da homeopatia por clínicos gerais. No país, estima-se que os gastos com a especialidade pelo sistema público de saúde – tanto para prescrição de medicamentos quanto em hospitais específicos – girem em torno de 4 milhões de libras, valor que supera R$ 20 milhões. A justificativa para a medida, que deve ser debatida neste ano, é de que há um investimento muito alto em uma técnica não tão eficiente. Em 2010, antes mesmo dessa discussão voltar à pauta, a Comissão de Ciência e Tecnologia do Reino Unido publicou um relatório em que sugeria que o sistema de saúde cessasse o financiamento de homeopatia, pois não havia evidências da eficácia da especialidade.
Anos antes, em 2005, a conceituada revista científica The Lancet publicou um editorial em que criticava a especialidade. Com o título O Fim da Homeopatia, o texto defendeu um estudo liderado pelo pesquisador Aijing Shang, da Universidade de Berne, na Suíça, que foi enfático ao sugerir que "os médicos precisam ser honestos com seus pacientes sobre a falta de benefícios da homeopatia".
No Brasil, a homeopatia é reconhecida como especialidade médica pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) desde 1980. Procurada por ZH, a entidade informou que, "para o reconhecimento de uma especialidade médica, é necessário o preenchimento de um conjunto de critérios, dentre eles possuir um conjunto de métodos e técnicas, que propiciem aumento da resolutividade diagnóstica ou terapêutica, e ter relevância epidemiológica e demanda social definida" e, de acordo com o órgão e com a Associação Médica Brasileira (AMB), a homeopatia cumpre esses requisitos.
Na falta de evidências científicas para defender a homeopatia, especialistas da área justificam a eficácia da técnica por meio da melhora no quadro dos pacientes e refutam a hipótese de placebo.
– Se funcionasse no efeito placebo, eu não teria pacientes com hipotireoidismo que o próprio endócrino me ligasse para dizer que ia tirar o hormônio porque a tireoide voltou a funcionar. Eu acho que todo tratamento médico tem efeito placebo. A relação paciente médico, quando é boa, já funciona como placebo. Faço homeopatia há 30 anos e vejo os exames melhorarem, as pessoas melhorarem. A pessoa melhora, e isso é comprovado com exames clínicos, radiológicos, então, não pode ser placebo – afirma Universina Ramos.
"Homeopatia não se presta para pesquisas quantitativas"
Por tratar a pessoa como um ser único, a homeopatia não se presta para pesquisas quantitativas, alega Universina.
– Eu não posso pegar 50 pessoas com dor de cabeça e dar um medicamento e ver se cura, porque cada um deles tem uma indicação diferente. Se você fizer uma experiência qualitativa, que existe, mostrando os resultados, aí a homeopatia ia aparecer, mas isso não é muito aceito, principalmente pelos grandes complexos farmacêuticos – avalia.
Para Milton Minoru Takeuti, a técnica teve origem empírica, logo, trabalha com observação, e não metodologias específicas como as que são cobradas da alopatia:
– A ciência moderna trabalha com testes de laboratório. Como a homeopatia foi criada a partir da observação, não existiu a necessidade de uma pesquisa validá-la. Nunca precisou passar por testes porque sempre foi usada e sempre deu resultado.
O processo de aprovação de um medicamento pela indústria farmacêutica leva cerca de 10 anos. O produto é testado em animais e humanos até chegar às prateleiras da farmácia, diferentemente da homeopatia. Conforme Takeuti, esse tipo de pesquisa requer um investimento muito elevado, precisando de incentivo governamental ou mesmo da indústria farmacêutica.
Equilíbrio entre corpo, mente e espírito
Ao contrário dos tratamentos convencionais que levam em conta apenas os sintomas, a homeopatia considera o indivíduo como um todo. Ela vai além dos sinais físicos e se aprofunda nas questões mentais e emocionais do paciente. Fatores como histórico de doenças, características e localização da dor, sono, alimentação, personalidade, emoções e relacionamento com as pessoas são levados em consideração pela especialidade.
– Se você não entender como a pessoa é emocionalmente, não saberá como ela vai reagir. Esse temperamento do paciente vai estar presente em todas as dores. O que está presente na mente está no físico – explica a médica especialista em homeopatia Universina Ramos, presidente da Câmara Técnica de Homeopatia do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul (Cremers).
Isso seria o que o pesquisador Herbert Roberts descreveu em um de seus estudos intitulado de The Principles and Art of Cure by Homoeopathy (Os Princípios e Arte de Cura por Homeopatia, em tradução livre). Ele diz que a homeopatia reconhece a vida em três partes: corpo, mente e espírito. "Esta é uma trindade e está sempre presente na nossa vida. Essas forças reagem em simpatia e são interdependentes", escreveu. Logo, a ideia da homeopatia seria promover o equilíbrio entre essas três partes, fazendo com que o próprio corpo se recupere.
Venda em farmácias é liberada
Apesar de não ter eficácia comprovada, os homeopáticos são vendidos legalmente em farmácias. No entanto, para que sejam autorizados, é obrigatório que sigam o mesmo controle de qualidade pelo qual passa a alopatia, além de garantir a origem e a graduação alcoólica.
– As homeopatias são regidas por farmacopeias. Por isso temos a farmacopeia homeopática brasileira que mostra todos os procedimentos de fabricação, manipulação e aviamento dos medicamentos – descreve Graciana Neumann.
Na contramão desse cuidado com o ser único, há uma movimentação dentro da própria indústria da homeopatia. São os chamados medicamentos homeopáticos vendidos como alopáticos. Um exemplo é a Baryta Composta, usada para solucionar problemas de garganta. Esses remédios não seguem os pilares da homeopatia, que prevê um medicamento individualizado. Assim como uma droga comum, trataria apenas um problema localizado, e não o paciente como ser único.
Usada para relaxar e tratar doenças
Desde criança, Bárbara Puricelli Alora usa homeopatia. Incentivada pela mãe, considerada uma "natureba", a biomédica de 30 anos utiliza os medicamentos para se tranquilizar e tratar eventuais dores de garganta.
– Sempre fui muito estressada, mesmo na infância – justifica Bárbara.
No ano passado, ela se aproximou ainda mais da especialidade quando passou a participar de de um programa de emagrecimento para controlar a ansiedade e a compulsão por chocolate.
– Minha vontade por doce era descontrolada. Comia achocolatado puro – relembra.
Não foi só a balança que acusou a eficácia do tratamento. Com quatro quilos a menos, Bárbara notou melhora no sono, ficou mais tranquila e conseguiu controlar a compulsão por alimentos açucarados.
– Vi que a gotinha no oceano faz a diferença – defende a biomédica.
O corretor de imóveis Maurício Agustini, 34 anos, de Nova Prata, também faz coro defendendo a homeopatia. Ele conviveu com diversos episódios de sinusite desde os 18 anos. Bastava ficar exposto ao sereno que logo surgiam os primeiros sinais de que a doença se manifestaria: nariz entupido, dor de garganta e peso nos olhos. Nem mesmo no verão a sinusite dava trégua:
– Era só tomar água gelada, cerveja ou refrigerante que os sintomas apareciam – relembra.
Depois de tentar todos os tipos de medicamentos alopáticos – o que incluía remédios pesados –, Agustini resolveu dar ouvidos à mulher, que lhe recomendava a homeopatia.
Há cinco anos, procurou uma médica e começou o tratamento. Foram necessários cerca de três meses para que os primeiros resultados aparecessem. Com o uso constante, o número de crises diminuiu.
– Não curou 100%, mas diminuiu bastante – atesta.
A evolução da homeopatia
A homeopatia nasceu no século 18, na Alemanha, quando a indústria farmacêutica sequer tinha surgido. Na época, o médico alemão Samuel Hahnemann fez um experimento tomando doses de Cinchona calisaya, uma planta medicinal, o que fez com que o seu corpo começasse a apresentar sintomas amenos de malária. Diante dessa observação, ele percebeu que um paciente poderia ser curado com mesmo medicamento capaz de provocar a doença em um indivíduo saudável. Daí, nasceu a máxima do "princípio dos semelhantes", publicada em 1796 em um artigo intitulado Ensaio Sobre um Novo Princípio para Descobrir as Virtudes Curativas das Substâncias Medicinais, Seguido de Algumas Exposições Sumárias Sobre os Princípios Aceitos Até os Nossos Dias.
Outro aspecto que também incomodava Hahnemann era a potência dos medicamentos usados naquele tempo.
– Faziam com que o organismo reagisse tanto que as pessoas morriam por conta da intensidade dos medicamentos – conta o presidente da Associação Brasileira de Homeopatia e Homotoxicologia, Milton Minoru Takeuti.
Logo, vem o outro princípio da área: o das doses infinitesimais, que trata da diluição por inúmeras vezes em água ou álcool com o intuito de potencializar a matéria-prima. Esse processo de diluição e agitação é chamado de dinamização, o que energizaria o medicamento, aumentando sua "força espiritual" e, com isso, seu potencial terapêutico.
No fim do século 19, os Estados Unidos fundaram uma das primeiras instituições dedicadas à área, o Instituto Americano de Homeopatia. Esta iniciativa aproximou mais médicos tradicionais daqueles que acreditavam nos poderes da homeopatia. Após uma série de antagonismos, a Associação Médica dos Estados Unidos aceitou os homeopatas como parte da instituição em 1903. Em 1939, a Food and Drug Administration (FDA), órgão responsável pelo controle de alimentos e medicamentos dos EUA, reconheceu a homeopatia e liberou a venda de seus medicamentos no mercado. Na Grã-Bretanha, foram criados hospitais homeopáticos.
No Brasil, a homeopatia desembarcou em novembro de 1840, com o médico francês Benoît Jules Mure. Em seu livro Homeopatia, o médico e escritor Paulo Rosenbaum conta que Mure teria viajado o mundo disseminando a prática antes de aportar por aqui. Sua crença na homeopatia teria surgido depois que se curou de uma tuberculose, não tratada pela medicina convencional. Mure passou oito anos no Brasil e deixou aqui a cultura da prática.
Embora tenha sido trazida para o Brasil no século 19, foi somente em 1980 que o Conselho Federal de Medicina (CFM) a reconheceu como especialidade médica. No decreto, o CFM enfatiza que para obter o título de Especialista em Homeopatia é preciso ter uma formação de dois anos em programa de Residência Médica credenciada pelo Sistema da Comissão Nacional de Médicos Residentes ou aprovação em Concurso da Associação Médica Homeopática Brasileira.
Pelo Sistema Único de Saúde (SUS), homeopatia, acupuntura, medicina tradicional chinesa, plantas medicinais e fitoterápicos fazem parte das Práticas Integrativas e Complementares. Em março de 2008, 517 estabelecimentos ofereciam o serviço. Em novembro de 2014, este número ultrapassava 4 mil.