Dias atrás, um menino de oito anos foi vítima de agressão física e preconceito racial cometidos por uma professora e pela diretora da escola, em um bairro marcado pela violência na periferia de São Paulo. Na comunidade, situações assim costumam ter como consequência natural a violência. Com amigos no tráfico, o pai do garoto foi procurado por gente que queria matar as duas mulheres, como forma de vingança. Ele resistiu às pressões, inclusive na família. Ex-aluno da Escola de Perdão e Reconciliação (Espere), procurou a instituição para conseguir desculpar as agressoras.
- Ele ainda não tem condições de falar com as pessoas da escola, porque está com muita raiva. Mas estamos no processo de ouvi-lo, para ele poder elaborar a questão. Só o fato de esse pai nos ter procurado, em lugar de ir pelo caminho da violência, mostra o impacto do nosso trabalho - observa a antropóloga Milena Mateuzi Carmo.
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A Espere, uma iniciativa do Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo, é uma das instituições que têm usado o perdão como forma de resolver conflitos e oferecer tranquilidade a quem sofre com a mágoa. Seguindo uma metodologia criada na Colômbia, oferece cursos e mantém uma estrutura para lidar com conflitos que surgem na comunidade.
Os alunos aprendem técnicas para a possibilidade do perdão e saem capacitados a ajudar outras pessoas. Muitos deles tornam-se facilitadores em núcleos comunitários de Justiça Restaurativa ou aplicam o método em conflitos que surgem no ambiente em que atuam. Também aprendem a perdoar.
- As pessoas vivem esse curso. Tivemos aluna que foi vítima de abuso sexual quando era adolescente. Já haviam passado mais de 20 anos, e ela tinha feito várias terapias. No final, ela disse que, pela primeira vez, conseguia dormir, via-se como protagonista da existência e enxergava uma vida que não passava pela agressão sofrida - conta Milena.
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Quando é procurada por causa de um conflito, a Espere conversa com os envolvidos, até que eles elaborem os sentimentos provocados pela agressão e possam ficar frente a frente. A intenção é vencer a lógica da vingança.
- Procuramos construir um espaço onde a pessoa possa rehumanizar o inimigo, deixar de vê-lo como monstro e passar a enxergá-lo como um ser humano que foi capaz de praticar um ato horroroso. Esse é o processo do perdão. As pessoas atendidas relatam alívio - analisa a antropóloga.
Justiça Restaurativa que previne conflitos
O poder do perdão também é testemunhado rotineiramente pela orientadora educacional Cassia Silva Gonçalves, da Escola Municipal Lidovino Fanton, de Porto Alegre. Em 2011, ela implantou no colégio o projeto Círculo de Construção de Paz, que utiliza princípios da justiça restaurativa para prevenir conflitos. No dia a dia, quando um problema surge, ela trata de reunir as partes. Nesta semana, por exemplo, um aluno novo vinha passando a mão no corpo de duas meninas. Cassia tratou de reunir-se com o trio. A profissional pediu que as alunas contassem como estavam se sentindo. Na mesma hora, o adolescente ficou impactado.
- Bah, me perdoa - disse ele, comprometendo-se em não repetir o assédio.
- Está tranquilo - desculparam as alunas.
Cassia entende que o resultado não seria o mesmo se ela tivesse falado com as duas partes em separado.
- O menino estava vendo a situação como uma brincadeira. Não tinha percebido como isso afetava as meninas. Quando o trabalho é feito dessa forma, em que um vê o lado do outro, percebe o dano que causou, repara esse dano e pede perdão, sai um peso de cima do ofensor e da vítima. Estou há quatro anos fazendo esse trabalho e nunca as brigas se repetiram no dia seguinte. Por incrível que pareça, o sucesso é de 100% - afirma.
*Zero Hora