Em meio a um momento de extremismos e intolerâncias, o mundo celebra os 80 anos daquela que é considerada a primeira grande derrota sofrida por Adolf Hitler, três anos antes do começo da II Guerra Mundial. Neto de escravos e sétimo filho entre 10 de uma família dedicada ainda à colheita do algodão, cultura predominante durante a escravidão americana, o negro James Cleveland Owens, mais conhecido como Jesse Owens (1913-1980), bateu quatro recordes olímpicos nos Jogos que tinham Berlim como sede – e Hitler como anfitrião.
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Naquele 1936, Hitler já pavimentava o caminho para a invasão da Polônia, e tinha como projeto eliminar bolcheviques, além de judeus e outras minorias avessas ao domínio étnico que almejava.
– A Olimpíada de 1936 era a oportunidade de Hitler comprovar sua teoria racial. Os atletas americanos, em especial Jesse Owens, jogaram uma ducha de água fria no racismo próprio do regime alemão naquele momento. Foi um marco, e é natural que ele seja lembrado sempre – diz o historiador Milton Teixeira, professor da Escola Técnica de Turismo (Protur), no Rio de Janeiro, sublinhando que o aniversário de 80 anos e o avanço de teorias extremistas reforçam essa necessidade.
Os Jogos de Berlim foram abertos pelo próprio Hitler, em 1º de agosto – e se estenderam até o dia 16. O potencial propagandístico do evento era oportuno. Tudo foi articulado para que sobressaíssem as maravilhas da Alemanha sob o nazismo. Mas entre 3 e 9 de agosto, Owens venceu nos 100m e nos 200m rasos, no revezamento 4x100m e no salto em distância – derrotando o alemão Luz Long.
O ambiente era de desafio. Nas esculturas espalhadas por Berlim, entre bandeiras ostentando os anéis olímpicos e as suásticas, eram idealizadas figuras atléticas, musculosas, sempre enfatizando a força sobre-humana e as características faciais tidas como arianas pelo regime nazista. Em abril de 1933, o slogan "somente para arianos" fora instituído nas organizações esportivas alemãs. Atletas "não arianos" eram segregados, em especial judeus como o boxeador Erich Seelig, o tenista Daniel Prenn e a atleta de salto em altura Gretel Bergmann, todos destacados nas suas respectivas modalidades. Também ciganos como o boxeador Sinti Rukelie Trollmann foram jogados no ostracismo.
Numa atitude inédita, americanos, britânicos, checos, espanhóis, franceses, holandeses e suecos, entre outros, pressionavam seus governos a boicotar os jogos em razão do desrespeito aos direitos humanos e, muito em especial, do racismo. Para arrefecer a reação que se desenhava, os nazistas permitiram que Helene Mayer, esgrimista judia, representasse a Alemanha. A atleta conquistou uma medalha de prata na esgrima, tendo de fazer a saudação nazista ao receber o prêmio. Foi uma entre nove judeus premiados, cinco deles húngaros.
Em 1936, não se sabia da extensão do extermínio que se desenhava, até porque o governo alemão tomou precauções como a de retirar painéis antissemitas já existentes por toda a Berlim, de recomendar que a polícia não prendesse homossexuais e de instar a imprensa a evitar o tom segregacionista usual naquele momento. E Owens se tornou um símbolo contra o segregacionismo praticado também nos EUA.
– Quando voltei de Berlim, continuei proibido de entrar pela porta da frente dos ônibus e não podendo morar onde quisesse. Não pude fazer publicidade de alcance nacional porque não seria aceito no sul do país – lamentou ele, anos depois da sua façanha. – Hitler não me cumprimentou, mas também não fui convidado para ir à Casa Branca receber os cumprimentos do presidente do meu país.
Esse constrangimento veio à tona quando Owens morreu de câncer no pulmão, em 31 de março de 1980, aos 66 anos. O presidente americano era o democrata Jimmy Carter, reconhecido pela atuação contra os regimes autoritários em voga na América Latina. Na mensagem oficial de condolências à família do atleta, Carter, oriundo da Geórgia, no sul profundo americano, deixou transparecer o sentimento de desagravo.
– Talvez nenhum outro atleta em todo o mundo, em todos os tempos, tenha simbolizado melhor a luta humana contra a tirania, a miséria e o racismo – disse o então presidente americano.
O historiador Voltaire Schilling contesta aspectos do símbolo atribuído a Owens em relação ao nazismo e valoriza o sentimento do atleta contra o racismo renitente em seu próprio país. Diz que há "uma lenda criada por jornalistas esportivos americanos".
– Quando o primeiro ouro foi conquistado por um alemão, Hitler foi cumprimentá-lo. Na mesma ocasião congratulou-se com três fundistas finlandeses e duas atletas alemãs. Então o presidente do Comitê Olímpico disse a Hitler que, na qualidade de convidado de honra, deveria doravante ou cumprimentar todos os vencedores ou não felicitar nenhum. Como não podia estar presente a todas as provas, Hitler optou por não descer mais da tribuna de honra. Quando Jesse Owens ganhou as medalhas, Hitler já tinha tomado a sua decisão. E, ao contrário de ter-se mostrado indignado, abanou efusivamente para o grande atleta – diz Voltaire.
O historiador afirma: os nazistas eram apreciadores do vigor físico. Viam negros como "excentricidade", ao contrário dos judeus, até porque não havia negros na Alemanha.
Mas a história fica com o símbolo, e Owens destoou da pretendida festa ariana.