O historiador francês Paul Veyne sustenta que o triunfo do cristianismo no século IV significou a passagem de uma religiosidade a la carte para a religião de partido único. O contraste entre sociedade multicultural e Stalin é metáfora daquela mudança histórica, da qual adveio o imenso poder da Igreja Católica. A data de nascimento disto é o Concílio de Niceia (325), presidido por Constantino, raiz de um processo histórico vigoroso, institucional, político e judicial. O amplo repertório de mitos e símbolos explicativos do mundo e da condição humana, as diversas possibilidades de credo e culto, bem como o pródigo calendário de festas e a onipresença dos deuses antigos na paisagem, nas cidades e nos lares, foram criminalizados em proveito de um sistema religioso autocrático e patriarcal, imposto pelo Império Romano. Os séculos seguintes, e especialmente a era da inquisição católica (sécs. XIII a XIX), ilustram a sentença de Veyne; a posse da verdade bíblica tornou-se arma de poder e de controle social, produzindo intimidação, mortes, obscurantismo anticientífico e antifilosófico e muitas moléstias culturais. Talvez o pior dos males então gestados tenha sido o recalque da sexualidade e a estigmatização da feminilidade, o que gerou um dos maiores desconfortos da história da cultura e clamou pela invenção da ciência de Freud, e por outras atitudes de emancipação que se elaboram de Boccaccio (séc. XIV) e Botticelli (séc. XV) aos dias de hoje. Os neopaganismos modernos são trincheiras da renovação histórica, em que poetas e outsiders enfrentam os demônios da tradição clerical, e abrem caminho para liberdades maiores, necessárias.
Em célebre episódio da luta entre pagãos e cristãos, em 384, o senador Quinto Aurélio Símaco defendeu o altar da Vitória (Nike) no senado de Roma, removido por imperadores cristãos, e clamou por tolerância religiosa; diante do bispo Ambrósio de Milão, que aconselhava ao jovem imperador Valentiniano II, tascou: "não pode haver um único caminho para tão grande mistério". Símaco era voz da elite letrada que defendeu o patrimônio cultural greco-romano, um homem sofisticado e corajoso. Temia o que ocorreu, que o triunfo de uma ideologia religiosa exclusivista produzisse a perda da liberdade e de outras virtudes clássicas; temia que a intolerância crescesse, como que antevendo o linchamento e o esquartejamento da matemática Hipátia de Alexandria, em 415, ou a execução de Giordano Bruno em uma fogueira em Roma, no dia 17 de fevereiro de 1600, duas mortes icônicas entre dezenas de milhares produzidas pela mesma força, a intolerância religiosa, neste caso, cristã.
Paganus, na Antiguidade Tardia, não significava um rústico que morasse em um ermo distante, onde a boa nova (evangelho) tardou a chegar, como difamou Agostinho (séc. V); significava a resistência de quem defendia a tradição, geralmente aristocratas muito cultos. Desde então, há um paganismo urbano, filosófico, por vezes místico, ligado ao comportamento de elites, e ao lado deste as tradições camponesas da Europa medieval; depois de Nietzsche e no século XX, acrescentam-se os neopaganismos da contracultura e seu rebento tardio, o esoterismo new age. Ao longo dos séculos, pagão é especialmente o outro, a alteridade estigmatizada pelo cristianismo, tido como tão negativo quanto o herege, o ateu ou os infiéis muçulmanos e orientais. Por outro lado, o paganismo é território de Byron, Debussy, Picasso, Fellini e tantos gênios da arte - inclusive o nosso, Chico Buarque, que nos inspira a amarmos como dois pagãos (só dois? perguntaria Teodora), e vai venerar a biblioteca pagã de seu pai, e recriar no Brasil as obras de Eurípides e de Aristófanes, e suas visões da mulher e da liberdade clássica.
Os deuses pagãos não são menos ficcionais que os demais, mas são muito mais poéticos, humanos e falam de um mundo de diversidade social e cultural. A imaginação pagã entende que há sacralidade em todo o universo, o que atinge cada forma de vida e também a sexualidade, o meio ambiente e a política; "tudo está pleno de deuses", teria dito Tales de Mileto (séc. VI - V a.C.), curiosamente, o pai da filosofia física. É possível ver o mundo como teatro panteísta e investigá-lo como natureza desconectada, física, racionalizável - desde que compreendamos a religião como fantasia cultural.
O Estado moderno defende o laicismo como antídoto contra o particularismo e o conflito religioso, e com isso garante uma liberdade religiosa no espaço público que é a cara do paganismo. Logo, o atual mosaico de crenças restaura algo daquela diversidade religiosa de muitos séculos atrás. Assim se entende o convite do carismático Chico do Vaticano, para que também os ateus de sã consciência entrem no céu. Todavia, ateus e os neopagãos, simbólicos ou estéticos, ainda preferem beber e brindar com bom vinho, clamando que os deuses ou a prudência laica impeçam o inferno de reinar em nossas ruas, e que os dissidentes não voltem a arder nas brasas da intolerância cega.
* Francisco Marshall escreve mensalmente no PrOA.
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