Há duas semanas, recebemos a visita de um colega inglês, veterano virologista. Durante uma de suas palestras sobre os atuais problemas de epidemias virais, ele mencionou pensativo que estivera presente na primeira reunião de avaliação de projetos de pesquisa sobre aids, quando ainda não se sabia se a síndrome era causada por um vírus. Muitos suspeitavam, mas era difícil estabelecer a conexão: os sintomas eram desconcertantes, e o vírus teria de ser novo, pois não havia nada comparável descrito até então. O vírus HIV acabou sendo isolado na França, rendendo um Nobel a Luc Montaigner e Françoise Barre. Poucos entendem por que essa descoberta não ocorreu nos Estados Unidos, na época líder absoluto de pesquisa em ciências da saúde. Ronald Reagan, então presidente, desencorajou abertamente as pesquisas sobre o assunto, cortando as verbas dos cientistas envolvidos. Sua posição era a de que a doença era um castigo divino a homossexuais e usuários de drogas injetáveis. O tempo rapidamente revelou que o vírus era transmitido por transfusões de sangue e de mãe para filhos, e Reagan viveu para ver o saldo aterrorizante de mortos que sua política deixou no país e no mundo. Conto sempre essa história em aula para ilustrar como ideologia pode influenciar algo aparentemente apolítico como a ciência. A palavra crítica nesse caso é "aparentemente" - porque a ciência não pode ser isolada do contexto histórico e político em uma determinada época ou determinado lugar.
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A descoberta de vírus Zika no Brasil e sua possível associação com os casos de microcefalia constituem hoje um desses exemplos, em que uma descoberta histórica estaria prestes a acontecer. Há décadas, o Brasil enfrenta o problema da dengue, causada por um vírus transmitido pelo mosquito Aedes aegypti. O desenvolvimento de uma vacina para o vírus não é simples - não conhecemos o suficiente sobre ele, e o Brasil não investe em pesquisa sobre isso. O governo comprou uma vacina da megafarma Sanofi há alguns anos, que não funcionou. Uma medida simples, e surpreendentemente eficaz, é o controle da replicação do mosquito por agentes sanitários, mas essa atividade vem inexplicavelmente diminuindo. Havia um projeto de produção de um mosquito geneticamente modificado para ser estéril, dificultando a propagação da espécie, mas a verba desse projeto foi cortada este ano. No ano retrasado, apareceu no Brasil outro vírus, o chicungunha, transmitido pelo mesmo mosquito. Houve grande confusão nos órgãos de saúde pública devido aos sintomas semelhantes ao dengue e à falta de testes diagnósticos específicos. Este ano, outro vírus, o Zika, também transmitido pelo mosquito, foi reportado de existir no pais por um estudo europeu, descrevendo o caso de um paciente que recém retornara do Brasil com o vírus. Imagino a cara dos pesquisadores europeus olhando o resultado, uma vez que Zika não existia oficialmente no Brasil. Outros casos de infecção foram confirmados pela Fundação Oswaldo Cruz e, em alguns meses, centenas de casos de microcefalia encontram-se associados ao vírus nas gestantes, ou nas cidades das gestantes.
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Pouco se sabe no mundo sobre a biologia desses vírus. Não se sabe se o Zika pode atravessar a placenta, ou ainda, se pode causar problemas de desenvolvimento em embriões. Não se sabe que tipo de resposta imune controla o vírus, portanto não se sabe que tipo de vacina teria de ser desenvolvida. Não existem dados de como as mães poderiam ter se infectado, se elas reportaram ou não sintomas durante, ou antes da gravidez. Essa é a primeira vez que essa associação entre o vírus e malformações é detectada. Ainda estão sendo validados testes diagnósticos definitivos, e poucos laboratórios do Brasil estão capacitados a executá-los. E provavelmente nenhuma dessas respostas será encontrada por pesquisadores brasileiros. Porque a verdadeira epidemia no Brasil é a de políticos e governantes que não têm o mínimo conhecimento do valor da pesquisa científica ou do calibre de cientistas que o pais possui. Imersos na crise que ameaça retirar seus preciosos privilégios, esqueceram há tempos daquele que seria o seu propósito, tentar entender os problemas brasileiros e planejar a resolução dos mesmos, a médio e longo prazo. Os cientistas no Brasil sabem hoje que estão de mãos atadas no mínimo pelos próximos dois anos, pois foram dizimadas as parcas verbas que recebiam. Dengue, chicungunha e Zika são vírus de países pobres africanos, e também da Tailândia, da Micronésia, da Polinésia. Países desenvolvidos só investirão nisso daqui a alguns anos, quando seus exércitos começarem a sofrer baixas ao circularem por locais onde o mosquito prolifera. Como Reagan, esses governantes deixarão como legado uma legião de vítimas que não precisaria ter existido.
*Cristina Bonorino escreve mensalmente no Caderno PrOA.
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