* Economista
Há tempos os governos gaúchos têm sido incapazes de prestar a contento os serviços mais básicos que um governo deve prestar. A sociedade gaúcha resignou-se a uma educação pública em franca decadência, a uma saúde baseada na terapia da ambulância e a uma segurança virtualmente inexistente. O elemento novo da crise atual é o rompimento do contrato social concernente ao funcionalismo, detonando uma nova fase da crise estrutural das finanças públicas. Gestões incompetentes tivemos muitas, mas alguma coisa em comum vem atingindo governos de diferentes orientações políticas. Como a crise fiscal chegou ao ponto atual? Por que as gerações futuras pagarão um preço desproporcional pela omissão das gerações passadas e da atual?
A dívida começou como resultado de um desequilíbrio entre receita e despesa correntes, o famoso resultado primário, que exclui fluxos financeiros dados por receitas oriundas de privatizações, liquidações patrimoniais, lucros de empresas estatais etc., e despesas extraordinárias e o pagamento da dívida. Os juros vão-se acumulando sobre resultados primários sucessivamente negativos. No começo, os desequilíbrios parecem inocentes, pois a dívida ainda é pequena, e a tentação para distribuir benefícios demagógicos e colher dividendos políticos é enorme. O problema é que isto não é sustentável, já que a sucessão de déficits, mais a incidência de juros, começa a tornar a dívida pesada. Aí começam as soluções paliativas: aumento de impostos, recursos aos depósitos judiciais, caixa único, atrasos de pagamentos, pedaladas e renegociações de dívida junto à União. As várias renegociações efetivamente aliviaram a carga da dívida. Porém, apenas temporariamente, pois o que realmente alimenta a dívida a longo prazo são os resultados primários, que continuaram intocados. Um erro foi a União não impor um ajuste efetivo aos Estados como contrapartida da renegociação. Sem ajuste estrutural e com renegociações periódicas ou expectativas de renegociação, armou-se a bomba fiscal.
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No centro do desequilíbrio estrutural do RS está o regime de previdência do funcionalismo. Nada ilustra melhor a irresponsabilidade dos políticos. As regras de aposentadoria - incluindo aposentadorias precoces, benefícios integrais, paridade entre ativos e inativos, um sistema medieval de pensões, e a negligência às mudanças demográficas - sempre foram incompatíveis com equilíbrio financeiro. Também contribui para o desequilíbrio estrutural a divisão orçamentária entre os poderes. Ao mesmo tempo em que o executivo foi onerado com maiores responsabilidades constitucionais, os outros poderes começaram a abocanhar porções cada vez maiores do orçamento com pouco compromisso sobre seus gastos. Não há mecanismos políticos e orçamentários que evitem que outros poderes ignorem restrições financeiras e pratiquem políticas de pessoal generosas, sem responsabilidades em termos de esforço fiscal. A agonia do Executivo não impede que deputados, desembargadores e procuradores usem os orçamentos para seus próprios benefícios salariais. Confunde-se autonomia dos poderes com irresponsabilidade fiscal.
Uma diferença do RS para outros Estados é que os custos políticos para promover o ajuste são maiores aqui. Ajuste fiscal significa comprar brigas políticas. A capacidade de mobilização dos grupos de interesse de fato torna essas brigas politicamente caras. Isto faz com que seja maior a chance de cortar serviços públicos do que gastos pouco úteis para a população, mas muito benéficos para grupos de interesse. Por que é tão difícil extinguir órgãos anacrônicos como tribunal militar, tirar a tutela de órgãos que poderiam se autossustentar e privatizar empresas que desviam o foco dos governos de suas funções?
Um olhar atento ao futuro mostra que o problema é mais grave do que parece. Há dívidas e passivos que logo aparecerão e que seguem ignorados. O não pagamento do piso dos professores é uma dívida que cresce rapidamente e não foi contabilizada. Outro passivo não contabilizado diz respeito aos planos de carreira do funcionalismo, que absurdamente atrelam remunerações a tempo e não a critérios de eficiência e também sobrecarregam o regime previdenciário. Além disso, más gestões geram passivos na medida em que deixam brechas legais que se transformam em derrotas judiciais para o governo e indenizações milionárias.
Crises de dívida causam um conflito de interesse entre gerações. Dívidas são economicamente legítimas quando são sustentáveis e deixam como contrapartida legados, como uma boa infraestrutura, um sistema de metrô, tecnologias, preservação ambiental etc. No entanto, há uma assimetria fundamental, mesmo em sistemas políticos democráticos, no sentido de que a geração atual tende a maximizar benefícios presentes e mandar a conta para as gerações futuras. E isto acontece, em geral, através de endividamento, porque a geração atual vota e decide, por ela e pelas gerações futuras, que obviamente não votam. Estas são representadas por estadistas apenas nas fábulas da literatura política. No caso gaúcho, a geração atual pode estar sendo injusta com as gerações futuras se não produzir soluções para o problema, pois passará adiante uma dívida quase fora do controle sem sequer deixar legados úteis, na prática significando uma economia sem oportunidades produtivas e com governos consumindo recursos apenas para si. A resposta pode ser uma diáspora em massa de jovens num futuro próximo.