O desafio era adivinhar o peso da vaca. Centenas de pessoas disputavam o prêmio, entre elas especialistas no assunto - fazendeiros, açougueiros, funcionários de frigoríficos -, mas também havia quem nada entendesse daquilo, como donas de casa e trabalhadores em geral.
Era 1906, e o estatístico inglês Francis Galton, observando a movimentação na fazenda, decidiu fazer um teste. Juntou todos os palpites dos 787 participantes do concurso e calculou a média. O resultado foi surpreendente: nenhuma estimativa individual se aproximou tanto do peso real da vaca quanto a média aferida por Galton.
A história acima é citada por James Surowiecki, colunista de negócios e finanças da revista The New Yorker, no livro A Sabedoria das Multidões (Record, 2004). Surowiecki defende a tese de que uma multidão eclética - com variedade em suas raízes, formações e opiniões - e sem líderes para induzi-la a qualquer inclinação, é capaz de tomar decisões mais acertadas do que um grupo de notáveis. A massa é que sabe das coisas.
Nenhum outro homem na história da humanidade conseguiu materializar essa premissa de forma tão clara no cotidiano popular como o americano Jimmy Wales - que desembarca em Porto Alegre no próximo dia 22 para uma palestra no ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento. Fundador da Wikipédia, projeto que começou desacreditado em 2001 devido ao potencial para virar um repositório de baboseiras, Wales é visto hoje como o visionário que transformou uma enciclopédia colaborativa no sétimo site mais visitado do mundo.
- Ele parte do pressuposto de uma inteligência coletiva, em que todo indivíduo sabe de algo e pode contribuir para a discussão de algo. O saber, portanto, não é propriedade de especialistas, e esta é a grande revolução da Wikipédia - avalia Alex Primo, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRGS e diretor da Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura.
Jimmy Wales, fundador da Wikipédia
Foto: Beatrice Murch
Talvez a maior aprovação à sabedoria dessas multidões que atualizam a Wikipédia - são 30 milhões de verbetes em 277 idiomas - tenha sido um estudo publicado na revista científica Nature, da Inglaterra. Após analisar 50 verbetes da Wikipédia e outros 50 da respeitada Encyclopædia Britannica, um grupo de acadêmicos concluiu que ambas apresentavam incidência semelhante de "erros graves": quatro na primeira e três na segunda. A Britannica, contrariada, lançou uma resposta de 20 páginas contestando a pesquisa ponto a ponto. "O estudo foi tão mal feito, e suas conclusões tão errôneas, que não teve mérito algum", dizia o final do texto.
Não faltam controvérsias envolvendo a credibilidade do site de Jimmy Wales - que, de fato, ainda apresenta erros bobos de revisão e eventualmente vira alvo de algum engraçadinho chacoteando figuras públicas. É grande a resistência entre professores, do primário à universidade, que com frequência proíbem alunos de consultar a Wikipédia para a realização de trabalhos.
- Isso ilustra bem a falta de qualificação dos educadores em relação à cultura tecnológica - critica Fabio Malini, professor da Universidade Federal do Espírito Santo e doutor em Comunicação e Cultura. - A Wikipédia é uma ferramenta fantástica de disseminação do conhecimento, e o educador deveria usá-la para construir com os estudantes verbetes locais, sobre a sua cidade e a sua cultura, estimulando o aluno a difundir o conhecimento que já tem.
Certo, mas e os trabalhos escolares? Se copiar da Wikipédia e estiver errado, vai dar problema.
- Ora, qualquer enciclopédia é só uma fonte de referência. Ela lhe oferece um rumo, apresenta a ideia central do pensamento ou pensador, expõe a essência do que você procura e dá orientações preliminares para você prosseguir a busca - pondera Sérgio Amadeu, professor e pesquisador de redes digitais da Universidade Federal do ABC.
O mais fascinante é justamente a forma como a Wikipédia se organiza para conquistar credibilidade, aprimorar a precisão dos verbetes e barrar usuários que espalham difamações. Jimmy Wales nem se mete nisso. São as centenas de milhares de voluntários que debatem, nos fóruns dentro do portal, as estratégias e normas para botar ordem no galinheiro.
A comunidade define, por exemplo, as regras para um editor tornar-se "administrador", que é o usuário com direito a eliminar páginas, reverter edições, bloquear outros usuários e proteger verbetes atacados com frequência - alguns verbetes protegidos: Brasil, Dilma Rousseff, Lula e Jair Bolsonaro.
- Era comum as pessoas escreverem "Lula é um molusco" e depois publicarem. Por isso algumas páginas precisaram ser bloqueadas - explica Rodrigo Padula, 32 anos, colaborador da Wikipédia desde 2006.
Quase todo dia, Rodrigo faz alguma edição no site - em nove anos, foram 2.060. Habituou-se a corrigir informações mal embasadas e a monitorar vândalos, sempre seguindo à risca os princípios editoriais da Wikipédia. A regra principal: nada de pesquisa inédita, análise, interpretação ou opinião. Só informação. E toda informação deve indicar o link da fonte de onde ela saiu (pode ser um livro, uma reportagem, um site oficial ou um artigo acadêmico). Quem aprova ou reprova a confiabilidade da fonte são os administradores.
Eu mesmo não consegui passar pelo crivo de um deles.
Dediquei três horas para escrever um longo verbete sobre minha banda de rock dos tempos da faculdade, mas só encontrei uma única reportagem da época atestando a veracidade do grupo. Publiquei o verbete e, 50 minutos depois, veio a avaliação do administrador: "Se não existem fontes que possam comprovar o cumprimento dos critérios de notoriedade da banda, conforme política interna da Wikipédia, não há nada que possa ser feito". Argumentei que a melhor fonte, naquele caso, era eu mesmo, mas não houve jeito: a página foi para o lixo.
- Embora todo mundo possa participar, qualquer comunidade precisa de líderes - diz o wikipedista Rodrigo Padula. - E, para se candidatar a administrador, o cara precisa ter um histórico de pelo menos 2 mil edições, além de uma conduta bastante ilibada, porque muita gente vai sabatinálo antes da eleição.
Há um ponto de inflexão aqui. Ao radicalizar os princípios de autogestão, cultura colaborativa e democracia direta, a contribuição da Wikipédia ultrapassa qualquer importância enciclopédica para desembocar na esfera política. Desde a Primavera Árabe, passando pelo 15M na Espanha ou pelos protestos de junho de 2013, todos esses movimentos se organizaram de forma semelhante.
- Mais do que isso, todos se comunicavam e tomavam decisões em wiki (que são sites ou documentos colaborativos, abertos a qualquer participação). O modelo de gestão da Wikipédia contaminou uma jovem cultura política - analisa Fabio Malini, da Universidade Federal do Espírito Santo. - Aqui em Vitória, por exemplo, abrimos um wiki para construir um manifesto sobre a ação da polícia contra os professores. Mais de cem docentes colaboraram.
É recorrente o argumento de que a produção colaborativa, seja ela com dezenas ou com milhões de pessoas, estabelece um laço afetivo e solidário entre os participantes - porque há um objetivo comum perseguido pela sabedoria das multidões. E não importa se o objetivo é montar uma enciclopédia, definir os rumos de uma cidade ou adivinhar o peso de uma vaca.
FRONTEIRAS DO PENSAMENTO
- Jimmy Wales, 48 anos, é fundador da Wikipédia e estará em Porto Alegre no próximo dia 22 para a segunda conferência do Fronteiras do Pensamento. Às 19h45, no Salão de Atos da UFRGS (Paulo Gama, 110).
- Ingressos esgotados. As próximas palestras serão de John Gray (8 de julho), Valter Hugo Mãe (3 de agosto), Saskia Sassen e Richard Sennet (24 de agosto), Suzana HerculanoHouzel (28 de setembro), Fernando Savater (26 de outubro) e Janette Sadik-Khan (23 de novembro).
- Os quatro encontros do Fronteiras Educação serão realizados de agosto a novembro, com o patrocínio exclusivo da Petrobras e parceria com Secretaria Municipal da Educação e UFRGS. Informações pelo fone 4020-2050.