Os números são eloquentes. De prefeitos eleitos em 72 municípios gaúchos nas eleições de 2012, o PT, principal partido da esquerda brasileira, viu esse contingente reduzido a 38 em 2016, com queda de 47,2%. Talvez mais simbólico ainda seja a figura de Raul Pont, homem de 72 anos elogiado como prefeito porto-alegrense entre 1997 e 2000 e referência petista. Pont rompeu uma aposentadoria política para ir às ruas como candidato à prefeitura da Capital e usou o espaço para defender teses caras à esquerda.
No PT, Pont é visto como fundador que aceitou um sacrifício. Outro emblema das origens do partido, o ex-deputado Flávio Koutzii, define o colega como "herói" e diz que os resultados foram adequados à situação petista. O candidato ficou em terceiro lugar, com 117.225 votos, o que significa 16,37%. Tanto Pont quanto Koutzii, figuras históricas da sigla, consideram necessária uma reflexão profunda sobre o contexto que levou ao segundo turno de Porto Alegre dois candidatos do chamado "campo conservador", o peemedebista Sebastião Melo e o tucano Nelson Marchezan Júnior. Diante desse quadro, falam em priorizar o debate sobre os erros em detrimento do açodamento para as eleições estaduais de 2018.
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Pont diz que foi candidato à prefeitura, mesmo sem condições materiais e de forma emergencial, para "não aceitar uma rendição" e projeta a reflexão interna e não eleitoral, agora, como prioridade.
– Não estamos preocupados com 2018. Nos preocupamos com esse resultado e com o debate no partido. O resultado eleitoral é fruto de dois processos paralelos: um é a criminalização dos partidos e o massacre do PT. Outro é que as políticas no governo Lula sempre foram discutidas e contestadas no partido, pelas alianças que foram feitas – diz Pont, que critica ainda a política econômica adotada por Dilma Rousseff em 2015, que "acabou arrebentando a base social" tradicionalmente simpática ao PT.
Em entrevista, Tarso cogita deixar o PT
Nessa linha, o ex-governador Tarso Genro, outro histórico do PT, afirmou em entrevista para o programa Timeline, da Rádio Gaúcha, que, caso não ocorra uma "revolução" no partido, cogita até deixá-lo.
– Se isso não ocorrer, acho que muita gente, não somente eu, vai reavaliar qual o tipo de movimentação política que vamos fazer, mantendo o PT como alternativa ou trabalhando por outra alternativa – disse.
Mesmo se referindo a questões externas, como uma "onda conservadora" mundial originária na crise financeira de 2008 e a "vitória cultural e econômica do individualismo", Koutzii fala em "responsabilidades" e "colapso profundo" do PT, que levam, diz ele, a uma discussão em um processo "longo, difícil, doloroso e instável" sobre "como se relacionar com a sociedade".
– Tem a ver com o fracasso de propostas que, na minha opinião, eram progressistas e que na opinião dos críticos da direita eram um populismo demagógico – diz Koutzii, que lamenta o avanço "cada vez maior" da "competitividade" e do "individualismo".
– Está posta a necessidade de refletir sobre si mesmo e o mundo em que estamos – propõe, definindo como de "luto" o momento do PT, que "tem responsabilidade sobre seus caminhos e seus descaminhos".
– Não podemos começar a discutir pela questão eleitoral (para 2018). Seria um erro – completa.
Uma reconstrução "desde baixo"
O sociólogo Emil Sobottka, da PUCRS, vê um "vácuo" de alternativas para a esquerda.
– O PT terá de se reconstruir desde baixo. Não tenho ideia de quem pode ser a nova liderança. Esse raciocínio vale para toda a esquerda, que ficou sem pai nem mãe. Só vejo vácuo. Luciana Genro (PSOL) e Manuela Dávila (PC do B) passaram pelo mesmo fenômeno quando candidatas. Começaram bem, mas caíram. Não acharam um discurso – analisa.
O cientista político Gustavo Grohmann, da UFRGS, diz que o encolhimento da esquerda no Estado deve ser analisada como "uma questão mundial".
– Pegue o caso da Grécia. A emergência de uma esquerda que se pretendia alternativa à crise de 2008 foi derrotada pelo esquema financeiro da União Europeia. É um fenômeno mundial, que chega ao Brasil depois, de forma dramática – diz ele.
A respeito da corrupção, Grohmann ressalva que isso "sempre existiu e não vai terminar agora" e serviu como "peça de artilharia" contra o governo. Até as "pedaladas fiscais", que deram ensejo ao impeachment de Dilma, Grohmann vê como "irrelevantes".
– O PT tem caráter orgânico. Quando um quadro erra, ao contrário dos outros partidos, é atingida a imagem do PT. Isso é bom de um lado, mas, quando ocorre um desastre, respinga em todos e ocorre o que está ocorrendo. Nos outros partidos, quando alguém é pego por corrupção, os outros podem escapar – diz.
O sociólogo Leo Peixoto, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), sustenta que a esquerda brasileira viu suas demandas reprimidas no regime militar. Quando "emergiu" ao governo, segundo Peixoto, não havia se modernizado e veio com a "visão de que o cidadão deve ser tutelado pelo Estado infinitamente rico e bondoso", sem deveres e sem que fosse "emancipado". Na crise, para manter o "ciclo de crescimento baseado no consumo", a ex-presidente Dilma Rousseff se utilizou de artifícios nos números, e "o partido se mostrou profundamente corrupto com projetos de poder financiados por estatais". Isso provocou "desilusão", "abstenção" e voto em "candidatos que falam em gestão". Tal roteiro explica, diz o sociólogo, o encolhimento da esquerda.
Peixoto vê esse quadro em toda a América Latina. Identifica a existência de "projetos de poder" em detrimento de um "projeto de nação". E isso, segundo ele, provoca desgaste.
Ideia de solidariedade coletiva dá espaço para solução individual
Emil Sobottka concorda que "a questão da corrupção serviu como mote para a indignação". No caso de Dilma, vê na sua conduta a fonte do seu isolamento, na medida em que não tinha apoio dos setores mais conservadores e, ao mesmo tempo, perdeu o do seu campo ideológico.
– As pessoas se voltaram contra o governo do PT por se sentirem traídas – diz ele.
– Figuras como Lula e José Dirceu traíram as esperanças de uma geração. Não foi só a corrupção, mas um governo muito diferente da construção que deu suporte ao PT por tantos anos. E a corrupção fere algo importante para o PT, que é a ética. Basta olharmos o suporte petista, que vem de intelectuais, classe média, movimentos sociais, Igreja, para quem a questão ética é fundamental. A decepção foi intensa – explica.
Sobottka vê no Brasil, na América Latina e em países da Europa o seguinte quadro: a "opção de solidariedade coletiva perde a sua capacidade de sustentação política de um modo geral".
– Na América do Sul, esse compromisso coletivo não tem a maioria de antigamente – diz, completando:
– As saídas são individuais. As pessoas acham que é melhor cada um cuidar de si. É a forma como o neoliberalismo vem se construindo nos últimos 30 anos.
Na visão do sociólogo, o prefeito eleito de Porto Alegre "representa bem essa proposta".