Ao despejar uma enxurrada de votos no nome de Jair Bolsonaro (PSL), deixando por pequena margem de elegê-lo presidente da República já no primeiro turno, o eleitor brasileiro divorciou-se neste domingo (7) das últimas duas décadas de história política do país.
Quase metade do eleitorado virou as costas às forças partidárias tradicionais de centro-direita e de centro-esquerda — que dominaram as urnas e se revezaram no Planalto a partir da redemocratização — para abraçar com fervor o candidato de um partido inexpressivo, um homem que nunca teve passagem pelo Executivo e que vendeu a si próprio como alheio e inimigo do sistema vigente.
O capitão reformado, um declarado admirador do regime anterior, a ditadura que vigorou no país entre 1964 e 1985, conquistou 49 milhões de eleitores, o equivalente a 46,24% dos votos válidos, cerca de seis pontos percentuais acima do projetado pelas pesquisas. Sua ascensão foi como uma avalanche. Um mês atrás, ele tinha 22% de preferência nas sondagens.
A ruptura com o passado — e mais especificamente com a polarização entre PSDB e PT que marcou os últimos pleitos presidenciais — repetiu-se nas eleições para governos estaduais, Senado, Câmara dos Deputados e assembleias legislativas. Os votos desaguaram abundantes em candidatos que associaram sua imagem à de Bolsonaro ou se apresentaram como recém-chegados à arena política, sem ligação com o atual estado das coisas. Uma multiplicidade de nomes com agendas conservadoras, ligados a partidos até agora nanicos, obteve votações avassaladoras e surpreendentes, um movimento que as pesquisas de intenção de voto não chegaram a captar.
No cômputo geral, o Brasil deu uma guinada inédita à direita.
O recado das urnas, neste primeiro turno, é a rejeição de toda uma classe política e de um modelo de país, seja para o bem ou para o mal. Mais do que o antipetismo, o que vigorou neste domingo, em grande parte do território brasileiro, foi o voto antissistema. Maculados por escândalos de corrupção, pela crise econômica e pelos conchavos políticos, PT, PSDB, MDB e outras forças que dominaram o cenário nacional nas últimas décadas viraram farinha do mesmo saco, na visão do eleitor, e saíram enfraquecidos do pleito. Ascenderam siglas sem histórico e, em alguns casos, sem ideologia clara: o PSL de Bolsonaro, o PSC, o PSD, o PHS.
Fernando Haddad (PT), credenciado para o segundo turno com 29% dos votos válidos, precisará agora de algo próximo ao milagre. Terá de conquistar a quase totalidade dos votos que foram para os demais candidatos e de costurar apoios com partidos dos mais variados espectros, incluindo tradicionais adversários. Terá de mobilizar a seu favor os receios de que Bolsonaro signifique um rompimento com os valores democráticos e com os direitos civis, como afirmam seus críticos dentro e fora do país. Mais do que tudo, Haddad precisará mudar o humor em que o brasileiro mostrou estar sintonizado neste momento.
No RS, surpresa na disputa ao senado
Bolsonaro não surfou uma onda, mas sim um tsunami, e nesse tsunami houve carona para muita gente. Candidatos que até pouco tempo atrás eram anônimos e aderiram a sua candidatura foram regiamente recompensados com votos. No Rio de Janeiro, o azarão Wilson Witzel (PSC), que nunca havia demonstrado nas pesquisas ter perspectivas de sequer chegar ao segundo turno, amealhou 41% dos votos válidos, depois de amalgamar sua imagem com a de Bolsonaro. Vai disputar o governo fluminense com Eduardo Paes (DEM), que era o líder das sondagens e somou apenas 19% dos votos.
O fenômeno repetiu-se em Minas Gerais, outro dos grandes colégios eleitorais brasileiros. O desconhecido Romeu Zama, do Novo, decolou no últimos dias antes do pleito, depois de abrir o voto para Bolsonaro, e superou velhos conhecidos do povo mineiro: Fernando Pimentel (PT) e Antônio Anastasia (PSDB). Terminou em primeiro, com 43% dos votos, e vai enfrentar Anastasia no segundo turno. Em São Paulo, Janaína Paschoal, também do PSL e autora do pedido de impeachment de Dilma Rousseff, tornou-se a deputada estadual mais votada da história, com 2 milhões de votos.
No Rio Grande do Sul, o efeito Bolsonaro fez-se sentir na disputa pelo Senado, em que Luis Carlos Heinze (PP), que parecia fora do páreo a julgar pelas pesquisas, teve a maior votação, com 22% da preferência. Desde o início, ele vinha associando sua campanha à do candidato do PSL à Presidência. Carmen Flores, candidata do partido de Bolsonaro à câmara alta do Congresso, também surpreendeu. Ficou em quarto lugar, com 14% dos votos, muito além do esperado e à frente de um dos políticos de maior projeção do Rio Grande do Sul, José Fogaça (MDB), que era considerado nome certo para ficar com uma vaga no Senado.
Congresso alinhado com o mais votado
A bancada gaúcha na Câmara e a composição da Assembleia Legislativa também refletem os novos ventos. Os gaúchos favoreceram como nunca se viu os candidatos de direita. Marcel Van Hatten (Novo), um dos mais estridentes antipetistas e um dos nomes mais à direita no cenário político gaúcho, teve a maior votação para a Câmara — fez 6% dos votos válidos, amealhando mais eleitores do que o candidato do seu partido ao governo do Estado, Mateus Bandeira. O segundo colocado foi Onyx Lorenzoni (DEM), um dos políticos mais próximos a Bolsonaro.
No âmbito estadual, o PSL fez os dois campeões de votos na Assembleia: Tenente Coronel Zucco (2,88% de preferência entre os gaúchos) e Ruy Irigaray (1,77%).
Na disputa pelo Piratini, não houve surpresas. Confirmando as pesquisas, Eduardo Leite (PSDB), que pode ter se beneficiado da busca por candidatos que pareçam recém-chegados à política, ficou à frente, com 36%. Vai enfrentar no segundo turno o atual governador, José Ivo Sartori (MDB), com 31%.
Ampliando o olhar para o país, o espantoso avanço das forças conservadoras nas duas casas do Congresso projeta uma situação que não vinha sendo vislumbrada. Simpatizantes e partidários de Bolsonaro, grande parte deles eleitos por siglas minúsculas, vão dominar a Câmara e o Senado, dando uma base sólida de apoio ao capitão reformado, caso ele supere Haddad na votação decisiva. Com uma maioria confortável no parlamento, o capitão da reserva terá condições para aprovar as leis e reformas que desejar — um cenário assustador para os setores à esquerda.
Nesse campo, apesar de ainda ter chance de conquistar Presidência, o PT sai da eleição abalado. Vencedor dos últimos quatro embates presidenciais, o partido virou uma espécie de força regional. Só conseguiu votações expressivas — e algumas foram esmagadoras — no Nordeste, onde elegeu três governadores e garantiu a chegada de Haddad ao segundo turno. Não há muito a comemorar. Abalado pela onda antipetista, o partido de Lula enfrentará nas próximas três semanas o desafio de se erguer dos escombros deixados pelo furacão Bolsonaro.