Na linha de frente contra o coronavírus em Bento Gonçalves, a médica Pauline Elias Josende, 29 anos, se cansou de ouvir pessoas menosprezando a força e as consequências do novo vírus e resolveu desabafar. A anestesiologista publicou um texto nas redes sociais no dia 29 de abril e, dias depois, foi convidada pelo Hospital Tacchini, onde trabalha, para gravar o depoimento em vídeo, para que pudesse chegar a mais pessoas. Até a manhã desta quinta-feira (7), o texto de Pauline já tinha sido compartilhado mais de 2,1 mil vezes.
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No Tacchini, a médica faz parte da equipe de intubação ortotraqueal, que é o recurso usado quando uma pessoa não consegue mais respirar sozinha e adequadamente. A intubação ortotraqueal, como explica Pauline, é a última etapa do tratamento e os profissionais de saúde se esforçam para passar mensagens positivas aos familiares. Colocar o procedimento em prática diariamente, segundo a médica, pode afetar o psicológico do profissional.
— Quando realizamos o procedimento no paciente, com sedação, não sabemos se é a última vez que alguém vai vê-lo acordado, se seremos a última pessoa a falar com ele. Você já viu a face de desespero de alguém usando toda sua capacidade de lutar pela vida pra puxar o ar e, ainda assim, sentir-se sufocado? Essa é uma doença que tem deixado as pessoas muito tempo em ventilação mecânica. É impossível dizer se ela vai sair daquela situação — escreveu a anestesiologista na publicação.
No vídeo, Pauline diz que o que mais incomoda é ver as pessoas menosprezarem a pandemia e transformarem o vírus em debate político.
— Os profissionais da saúde estão cansados de repetir que isso realmente existe, e que bom que não chegou na sua família ainda pra que você acredite. Estamos cansados de repetir que quanto mais o isolamento funcionar, mais ele vai parecer desnecessário. Eu estou cansada de lutar contra a ignorância quase mais do que tenho que tirar e colocar máscara, face shield, avental de plástico, proteção de pescoço, luvas, pro pé, roupas do bloco, trocar tudo isso cada vez, tomar banho a cada contato confirmado — contou, listando todo material de proteção utilizado para evitar a contaminação.
O desabafo de Pauline também é um pedido para que as pessoas parem de espalhar informações falsas sobre o coronavírus e para que respeitem quem está trabalhando, quem está perdendo familiar e quem está doente. O relato da médica é para que as pessoas não furem o isolamento social indo a jantares, encontros, churrascos ou qualquer tipo de aglomeração:
— Você se expõe e expõe os outros. Coloca a mão na consciência só um pouco. Você nos desanima e nos ofende. Para os profissionais de saúde que entubarem menos pessoas e consolarem menos familiares, basta cada cidadão fazer a sua parte.
Uma semana após o desabafo, Pauline se diz impressionada com a repercussão, mas feliz com as mensagens que recebeu:
— O texto era grande, mas muitas pessoas leram. Foram diversos retornos positivos, muitas pessoas solidárias. Outras que diziam também se sentir assim, e não só da saúde, mas da segurança, da imprensa e de outras áreas que não podem parar (diante da crise). O pessoal está cansado destes comentários negativos.
Sobre o desabafo, Pauline conta que já conversava com colegas que também se sentiam chateados com o que viam nas redes sociais. O medo é que, por estes discursos, a quantidade de pessoas precisando de ajuda médica continue crescendo até um ponto que a estrutura não suporte.
— A descrença das pessoas é algo que acompanhamos desde o início. Há muitas pessoas que acham que não está acontecendo nada. Só que a gente (profissionais da saúde) evita a ler, porque só nos incomoda.
A preocupação, segundo Pauline, é que, por ignorância e a falta de cuidados, o número de pacientes continue aumentando:
— Algumas pessoas só vão entender que a doença existe e é grave quando chegar na sua família. Isso é triste. Após tanto sofrimento, das pessoas e famílias que lutam contra doença, seria bom enxergar que todos estão fazendo sua parte e que estamos vencendo esta crise.
Distância e cuidados
No Hospital Tacchini, a anestesiologista atua em uma das equipes considerada de maior potencial de contaminação pelo novo coronavírus. Além de lidar com pacientes em estados graves, os profissionais tem na sua rotina diversos equipamentos e higienizações para evitar o contágio. Além do cansaço físico e mental da profissão, a equipe precisa lidar com outras restrições dolorosas. Neste domingo, Pauline e o irmão Gibran, 23, que trabalha como clínico geral no Hospital Militar de Porto Alegre, não poderão abraçar a mãe Adriana Elias Josende, 50.
— Minha mãe não nos vê há mais de um mês e nem vai nos ver neste Dia das Mães. Ela entende que não podemos nos ver porque ela é hipertensa e tem problema de coração. Nos telefonamos e fazemos vídeos, mas sei que ela está bem triste, que é difícil — lamenta a médica.