Tal qual a adolescente assediada pelo motorista de Uber em Porto Alegre, que justificou o crime dizendo que a jovem usava um "shortinho tipo Anitta", Luana Ledur, 24 anos, e Laís de Carvalho, 25, viraram alvo de uma combinação explosiva entre machismo e exposição nas redes sociais, tanto pelo traje usado por Luana, quanto pela performance que ela protagonizava no Centro de Caxias do Sul.
As duas amigas foram massacradas (e também receberam apoio) por dezenas de homens e mulheres na internet por conta de um ensaio fotográfico de Luana, em que ela fazia movimentos de ginástica artística e pole dance pelas ruas da cidade, incluindo a Avenida Júlio de Castilhos e a Praça Dante Alighieri. Um homem não identificado gravou um vídeo de parte da sessão ao ar livre em que Luana performava numa barra de sinalização na esquina da Júlio com a Rua Doutor Montaury. Outros fizeram fotos. Em seguida, as imagens surgiram no Facebook, no WhatsApp e no Instagram. Em poucas horas, elas viraram alvo de linchamento virtual e personagens de um dos assuntos mais comentados em Caxias do Sul na semana pré-Carnaval.
Foi Luana quem sofreu as principais ofensas. Por ser a modelo da sessão, usar roupas curtas de ginasta, meião de futebol e principalmente por ser mulher, foi taxada explicitamente ou nas entrelinhas como garota de programa. Sofreu assédio e agressões verbais de homens. Também recebeu xingamentos de outras mulheres. Os autores dos ataques não levaram em consideração o trabalho profissional de Luana e Laís. Prevaleceu o efeito manada _ tendência humana de repetir ações feitas por outras pessoas. A reportagem constatou que a grande maioria dos insultos partiu de perfis que se identificam como moradores de Caxias.
O histórico de vida das duas jovens foi desconsiderado na tentativa de desconstruir algo que muita gente sequer sabia do que se tratava. Técnica em enfermagem, Luana se desdobra como instrumentadora cirúrgica num hospital de Flores da Cunha e cuidadora de um paciente em Caxias. Sua outra grande paixão é a ginástica artística, modalidade assimilada ainda nos tempos da adolescência. Ela quer ir além e vislumbra o futuro como sargento do Exército. Laís batalhou muito tempo como taxista e motorista de aplicativo. Havia dias em que ficava 14 horas seguidas num volante, mas valeu a pena para juntar dinheiro e realizar o sonho de trabalhar como fotógrafa. Quando não está captando imagens ou cuidando do filho de cinco anos, luta por melhorias na comunidade do loteamento São Matheus, zona sul de Caxias do Sul, onde é a vice-presidente da associação de moradores.
Impacto e vergonha
A ideia de fazer o ensaio foi de Laís. A fotógrafa queria exaltar a beleza de Luana em meio ao cenário urbano numa tentativa de fugir do lugar comum. Com baixa autoestima, a técnica em enfermagem relutou, achava que o corpo não estava legal. A negociação e o planejamento duraram cerca de um mês e as duas saíram às ruas na manhã da última terça-feira, dia 18.
A dupla começou a sessão no Largo da Estação Férrea. Quem estava por perto achou bacana os passos firmes de Luana, sua flexibilidade e facilidade de executar os passos de ginasta. As amigas decidiram seguir pelas ruas para outros enquadramentos. Se algumas pessoas elogiaram, outras abusaram. Pelo caminho, homens assobiaram, chamaram Luana de gostosa. Um deles prometeu colocar R$ 10 na "tanguinha" da jovem _ na verdade, um short esportivo.
A técnica em enfermagem e a fotógrafa meio que relevaram e seguiram adiante.
_ Posso dizer de que cada 10 pessoas, uma fez comentários desse tipo _ atesta Luana.
A sessão terminou no final da manhã na Praça Dante. Dali, as amigas se despediram e seguiram suas rotinas. O choque viria no final da tarde. No hospital, Luana recebeu mensagens de amigos e familiares questionando o vídeo e as fotos que circulavam nas redes. Ela não acreditou e decidiu conferir na internet. Os comentários esdrúxulos levaram ao baque. Um homem citou, por exemplo, que a Bíblia jamais aprovou o pole dance ou que não havia permissão para tal prática na praça. Uma mulher insultou Luana por estar querendo se mostrar demais. As críticas também vieram de familiares assustados com a repercussão.
— Me xingaram muito, me vi sozinha, se viraram contra mim. Pediram o que eu estava fazendo da minha vida. Quando comecei a ler, caí no desespero e só chorava, fiquei arrependida. O que fiz de ruim? Foi tão ingênuo o que fiz, aceitei uma proposta da fotógrafa para fazer minha arte, o trabalho que gosto na minha vida e a pessoa vem e faz isso? — relembra Luana.
A técnica em enfermagem foi para casa aos prantos. Estava estarrecida, envergonhada.
— Tu não tem noção do que foi ler aquilo: "tá ruim o trabalho nas casas noturnas e tá vindo na rua para trabalhar. Se eu der R$ 50, ela faz alguma coisa?". Mulheres falavam assim: "você quer chamar a atenção, então pinta o cabelo de vermelho, faz outra coisa". Nossa, eu pratico essa arte há anos, fui ginasta, dancei gafieira, danço até em CTG, sou primeira prenda com muito orgulho — desabafa.
Apesar do apoio de amigos e de Laís, ela decidiu se trancar em casa, desligar o telefone e esquecer de tudo. Queria se esconder, sumir. A jovem tem dificuldades para dormir e controlar a ansiedade, por isso, faz tratamento. Os ataques só pioraram a situação.
Fotógrafa enfrentou haters
Enquanto Luana sentia-se humilhada, Laís também absorveu o impacto, mas se manteve firme por fora e decidiu enfrentar o ódio. Ela acessou cada comentário raivoso e fez questão de responder e tentar explicar, mas sempre de maneira educada. Solicitou que os vídeos fossem excluídos, pedido ignorado por muitos. Era como falar ao vento.
— Acham ridículo, tudo bem, é tua opinião, mas quando começam a desrespeitar, que deveria estar na zona, em vez de distribuir panfleto... Eu defendo meu trabalho, no vídeo que fizeram não aparece nem um momento eu como uma câmera. Daí o pessoal iria entender que era um ensaio fotográfico. Daquele jeito, ridicularizou a cena. Não ofendi ninguém nos comentários, respondi pedindo o respeito pelo trabalho e pelo trabalho da Luana também — conta Laís.
As jovens acreditam que o compartilhamento do vídeo de Luana é o que motivou os ataques. Por registrar um fragmento da sessão em que o pole dance estava em destaque, a gravação teria direcionado os comentários para um grande equívoco: de que a prática tem cunho sensual quando, na verdade, é um esporte, o que causou revolta em muitas praticantes e atletas de pole dance.
— Nosso ensaio não tinha relação com o pole dance. Era sobre flexibilidade, elasticidade, só que as pessoas se apegaram a isso. Fizeram confusão com o pole dance. O pole dance tem que usar roupa curta para a pele ter aderência na barra, não tem nada de sexual. Daí confundem com dançarina de boate, mas é esporte, exige força. Foi impactante — desabafa a fotógrafa.
— Fiz como várias colegas minhas do pole já fizeram ensaios em outras cidades, só que não teve repercussão que teve aqui — complementa Luana.
"Tu te sentes nojenta"
Na manhã seguinte aos primeiros ataques, felizmente, Luana encontrou muitas mensagens de apoio, várias de pessoas desconhecidas. Na quinta-feira, as duas se reencontraram pela primeira vez desde o ensaio, se abraçaram e choraram em plena Praça Dante. Laís e Luana não enxergam como tirar algum proveito da amarga experiência, mas não vão se intimidar.
— Não sobrou muita coisa, muita gente caindo em cima com preconceito, falando do meu trabalho, antes mesmo de ver o trabalho pronto. Para mim (as fotos nas ruas) é direito, é liberdade de expressão. Como fotógrafa, vou escutar as tuas ideias de projeto, oferecer algumas imagens, tem toda a preparação antes, não é só chegar e apertar o botão da câmera. A pessoa deve fazer o que quer. Já me pediram um ensaio nu, não faço, o que eu faço é mostrar a arte do pessoal. Esses ensaios artísticos (da Luana) não me dão dinheiro, o que me garante é o comercial. Trabalho das duas formas para que meu hobby prevaleça para continuar na fotografia. Não posso deixar isso morrer — conclui Laís.
Luana decidiu filtrar a parte ruim e gravar na memória os elogios e mensagens de apoio. Considera a necessidade de homens reverem seus conceitos e descreve a terrível sensação do assédio:
— Quando te chamam de gostosa na rua ou na internet... A primeira coisa é nojento. Se tu tem uma cabeça mais abalada, tu te sentes, é difícil falar esse negócio... tu te sentes mais para baixo. Sinto medo de um cara que me vê e acha que tem liberdade de tocar em mim ou falar. Tu te sentes nojenta, bah o meu corpo está fazendo esse cara falar essas besteiras para mim. Me sinto culpada, porque daí não posso usar uma calça jeans mais colada, um decote, um batom vermelho porque podem dizer nossa que boquinha, nossa que coxa, olha essa bundinha. Te sentes culpada, mesmo não sendo culpada — descreve.
Ela e a amiga tentaram descobrir quem foi o responsável pela gravação e primeiro compartilhamento do vídeo na internet. Seria um rapaz, flagrado no ensaio com um celular filmando a cena. A reportagem tentou conversar com o suposto autor, mas ele nega qualquer envolvimento.
"O que as meninas estavam fazendo é da rua, da liberdade"
Nos ataques contra Luana e Laís, é possível identificar assédio sexual, preconceito de gênero, ataques à liberdade de expressão e ao direito de ir e vir e muita desinformação. Também é possível ver a incompreensão em relação às diferentes formas de manifestação artística.
— A arte popular é do povo, é uma forma de resistência, é uma forma de cultura. O que as meninas estavam fazendo é da rua, da liberdade — pondera Vanessa Carraro, professora de dança e com experiência para avaliar o impacto que um simples ensaio pode causar.
Ela lembra de uma performance em Porto Alegre, que envolvia o abraço e indica como casos semelhantes tendem a se repetir.
— A gente estava no chão se abraçando. As pessoas ficavam muito incomodadas pelo toque, mas ao mesmo tempo foi proposital, faz a outra pessoa refletir tanto pelo lado positivo quanto pelo negativo, de colocar para fora o que pensa.
Vanessa questiona os haters (como são chamadas as pessoas que odeiam tudo) de internet e coloca na balança o peso de ser mulher na estrutura patriarcal da sociedade.
— As pessoas que comentam sobre o que consideram atos vulgares, geralmente deixam o filho na frente da TV assistindo coisas impróprias. Vem uma questão de gênero também: se fosse um outro contexto, de homens, seria outra conotação.
"Liberdade é a melhor rima para felicidade"
Imagina-se que o debate incessante sobre o ódio e a intolerância nas ruas e no mundo virtual pode levar a uma maior conscientização. É louvável e urgente, mas talvez a humanidade esteja diante de um problema sem solução. Antropóloga, escritora e doutora em Antropologia Social, Mirian Goldenberg ressalta o fortalecimento do ódio em escala mundial. Ela entende que ficou difícil se posicionar, se expor ou simplesmente estar em qualquer lugar sem ser atacado:
— Existe a liberdade de ser colocar na rua para fazer o que essas jovens queriam? Sim. Existe ódio e intolerância? Sim. Tanto que muita gente está protegendo, não está fazendo mais nada ou se expondo de forma alguma por medo. Qualquer coisa pode ser objeto de violência. A radicalização vem de tudo que é lado.
Mirian já pesquisou mais de cinco mil homens e mulheres para compreender as interações sociais e suas consequências. Admite que se sente impactada com o atual estágio das relações.
— Chegou-se a um nível de egoísmo e de narcisismo em que as pessoas não enxergam mais os outros. Os outros se tornaram inimigos, invasores. Na praia, ninguém olha ninguém, só para o próprio umbigo, tirando selfies para si, então acho que não tem muita saída.
Por outro lado, Mirian acredita que a superação dessa violência cotidiana passa por atitudes pessoais. Ela cita o livro de sua autoria, Liberdade, felicidade e foda-se (Planeta, 2019), em que discute a ideia de que homens e mulheres precisam ter coragem para inventar uma vida mais livre e mais feliz.
— O que cabe a nós é fazer as pessoas compreenderem o que estamos vivendo e ter uma atitude diferente. Não tenho atitudes violentas na vida cotidiana, não me relaciono com pessoas violentas, me policio dos atos de agressão, de ódio. Prefiro dizer bom dia, obrigada, desculpa, é quase como se estivesse que apreender o bê-á-bá da civilização, como ser uma pessoa civilizada.
Ao avaliar o caso de Luana e Laís (a história foi narrada à antropóloga pela reportagem), Mirian enxerga o ir além num mundo caótico. Para ela, esse tipo de massacre virtual é simplesmente a tentativa de coibir a liberdade de alguém. Contudo, não é preciso ser violento para reagir aos que classifica como vampiros emocionais, ou seja, pessoas que tentam desconstruir e destruir o que outro é ou faz.
— Liberdade é a melhor rima para felicidade, mas para isso as mulheres que pesquiso tiveram que ligar um botãozinho do foda-se, que não é agressivo, nem um xingamento, é lúdico e libertador. Por que liberta? Porque não pode deixar ser eu mesma em função dos outros, do que pensam, dizem ou fazem. Ligo esse botão e não xingo ninguém. Penso: foda-se se tem gente que vai achar que sou isso, vou viver a minha vida e ser eu mesma. Foda-se se vão me ridicularizar se uso biquíni e estou gorda e pelancuda, quero ir à praia. Foda-se se vão achar me achar uma velha periguete porque gosto de dançar no Carnaval. Mas ao ligar esse botão, a mulher não briga com ninguém, não entra no clima de violência, ódio e intolerância, simplesmente não se deixa afetar.
Mirian diz que a atitude é libertadora e pode formar correntes:
— Quanto mais gente se libertar, principalmente mulheres, mais liberdade terão as outras para fazer o que quiserem com os seus corpos. Também acho que não adianta ficar entrando em polêmica, tem que conscientizar mais e mais pessoas com relação a esse tipo de comportamento intolerante que vai ser cada vez maior. A gente tem que ser forte. Como? Sendo livre.
Em protesto, praticante de pole performances na Avenida Júlio
Os comentários agressivos nas redes sociais, principalmente pela erotização do pole dance, irritaram as praticantes da atividade, que tem modalidades que vão da dança ao esporte. Em protesto, integrantes de três estúdios de Caxias do Sul farão performances ao longo da Avenida Júlio de Castilhos, na tarde deste sábado. A manifestação pretende desmistificar a visão sexualizada da prática e despertar o interesse de outras mulheres e até mesmo de homens.
— Nos sentimos ofendidas. Discordamos dos ataques contra elas (Luana e Laís) e contra o pole. Por isso, sentimos necessidade de defender o pole. A intenção é desmistificar o preconceito, que sempre existiu. Queremos abrir a mentalidade. Acham que é coisa de prostituição — reitera Taciane Dal Bosco, instrutora de pole.
Segundo Taciane, Caxias o preconceito surge muito pela incompreensão do público sobre as roupas adequadas para a prática do pole e pelo mito de sensualidade que se criou ao longo da história.
— O pole exige pouca roupa justamente pela questão da segurança, precisa da trava do corpo, do contato da pele na barra, e com uma calça isso pode não ser possível. Consigo praticar com as mãos, tenho força, mas 90% das praticantes não têm a mesma força.
O evento Pole Dance Street é aberto ao público e começará às 14h na Avenida Júlio, a partir da Marechal Floriano, e seguirá até a Praça Dante.